São Paulo, quinta-feira, 27 de junho de 2002

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TENDÊNCIAS/DEBATES

A Fapesp e a riqueza do conhecimento

CARLOS VOGT

A muitos cientistas agrada, às vezes, a retórica triunfalista, misto de mito e de religiosidade pomposa, que impregna suas declarações após importantes descobertas científicas.
Tal é o caso, por exemplo, do biólogo Walter Gilbert, vencedor do prêmio Nobel, que na década de 1980, quando se definia e se tornava realidade o projeto Genoma nos EUA, não teve dúvidas em afirmar que esse projeto era o graal da genética humana e a resposta final ao mandamento "conhece-te a ti mesmo".
No mesmo diapasão, mas vindo agora de um político, o então presidente Bill Clinton, em 2000, no evento organizado para anunciar o sequenciamento "virtualmente completo" do código genético humano, saiu-se com algo na linha de "estamos aprendendo a linguagem com que Deus criou a vida".
Não é necessário fazer muitas ilações para ler na declaração do cientista e no entusiasmo do dirigente a vontade de afirmação divina do homem, pelo conhecimento.
Mais ceticamente crítico, aqui no lado sul do continente, o professor Ricardo Brentani, coordenador do Centro de Pesquisas Antônio Prudente sobre o Câncer, da Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo), acautelou-se, cercando de cautelas a ciência e a instituição que a financia: o anúncio feito em junho de 2000 é, sem dúvida, um grande feito, mas o que ele significa é "apenas que definimos o tamanho do palheiro no qual precisamos procurar a agulha".
De qualquer modo, a imagem do Graal permanece presente na mitologia das externalidades da ciência e tem, inclusive, expressões literárias importantes, como a que se pode ler no excelente romance "Em Busca de Klingsor", do autor mexicano Jorge Volpi, recentemente publicado, no qual a estrutura narrativa é toda organizada em torno dos três atos da ópera "Parsifal", de Wagner, e tem sua ação desenrolada em torno dos desenvolvimentos científicos e tecnológicos que culminaram com a invenção da bomba atômica no fim da Segunda Guerra Mundial.


A educação, com critérios de simples quantidade, perde sua função ética e social no desenvolvimento do indivíduo


Mas, na saga do cavaleiro andante Parsifal, é preciso atentar, contudo, para o fato de que ela se constitui também num mito de busca da identidade individual e num ritual de aprendizagem, amadurecimento, autonomia e responsabilidade ética e social do indivíduo em relação ao outro. É, assim, um mito da importância e da força da alteridade na constituição da identidade de cada um.
No primeiro encontro de Parsifal com o Rei Pescador, ferido de morte como as terras estéreis do reino, o cavaleiro falha porque não consegue formular as perguntas corretas. Parsifal conhece as normas de conduta, sabe os códigos, tem as informações, mas não compreende nem o seu sentido, nem a sua finalidade. Só depois de perambular e aprender, por ensinamento, por experiência de si e do mundo e por vivência do conhecimento, é que ele voltará ao castelo do rei ferido e perguntará, com sincera curiosidade e humano interesse: "Senhor, o que vos aflige? A quem serve o Graal?".
O professor José Fernando Perez, diretor científico da Fapesp, chamou-me outro dia a atenção para um artigo da "The Economist" de 8 de junho, sobre o livro "Does Education Matter? Myths about Education and Economic Growth" ("A Educação Importa? Mitos sobre a Educação e o Crescimento Econômico"), de Alison Wolf, professor de educação na Universidade de Londres.
Nele, o autor discute a questão educacional britânica, sob a égide das declarações, feitas pelo primeiro-ministro Tony Blair, de que suas três prioridades maiores são "educação, educação e educação" e as consequências econômicas e sociais dessa fixação. Um dos aspectos a serem ressaltados é que a educação, com critérios de simples quantidade, além de perder sua função ética e social no desenvolvimento do indivíduo, não contribui efetivamente para o crescimento econômico do país.
Ao contrário, conclui Alison, "nossos antepassados recentes, vivendo em tempos significativamente mais pobres, dedicavam-se aos propósitos culturais, morais e intelectuais da educação. Nós nos tornaremos mais pobres se isso for neglicenciado".
Desse modo, e para firmar publicamente o compromisso que todos temos com o importante papel que a Fapesp desempenha, desde a sua criação, no sistema de ciência, tecnologia e educação superior no Estado de São Paulo, seria importante enfatizar e dar continuidade ao esforço sistemático e constante que a fundação realiza, historicamente, para criar condições de felicidade para a produção do conhecimento e para a sua transformação em efetiva riqueza.
Finalidade pragmática, que visa ao valor econômico e ao desenvolvimento material da sociedade; objetivo ético que traz, embutida em cada programa das suas diversas linhas de atuação, a crença de que, na formação profissional de nossos jovens estudantes, além da competência técnica de sua especialização, é também imprescindível a formação na experiência integral e humanista de que a cultura é um aprendizado e um ensinamento e de que a ponta dos pés do conhecimento nos põe sempre num limiar: o da sensação de poder tocar o intangível e do apelo da realidade que nos chama para os nossos compromissos e responsabilidades sociais.


Carlos Vogt, 59, poeta e linguista, assume hoje a presidência da Fapesp. Foi reitor da Unicamp de 1990 a 94.



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