São Paulo, domingo, 27 de junho de 2004

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CRISE EXPLOSIVA

Há algo de podre no reino da Arábia Saudita. É a própria monarquia, que, segundo inúmeros analistas, vive seus estertores. O apoio do Ocidente e o aparelho repressivo podem, é claro, dar-lhe sobrevida, mas o país atravessa uma situação que poderia ser classificada de pré-revolucionária. O que há de menos incerto é que, sem reformas profundas, que parecem improváveis, o regime não se sustenta no médio e no longo prazo. O que viria em seu lugar -um governo de radicais da mesma estirpe de Osama bin Laden ou uma intervenção militar ocidental- permanece uma incógnita.
As razões para a instabilidade remontam à fundação do reino, em 1932, tempo em que a população saudita se contava entre as mais pobres e mais religiosas do planeta. O ambiente inóspito do deserto e a dificuldade de extrair o sustento da terra levaram à constituição de uma moral extremamente rígida, na qual Deus era onipresente.
A riqueza proporcionada pelo petróleo mudou o cenário. E, como se sabe, nunca é muito fácil conciliar afluência financeira e códigos morais inflexíveis. Foi aí que começaram os problemas da Casa de Saud. Como observou o jornalista Bruce Anderson, do diário britânico "The Independent", o sentimento de culpa não é uma exclusividade de judeus e católicos. Os representantes da monarquia saudita, por gozar das delícias do Ocidente, foram cada vez mais transferindo poder para os wahabitas (ramo do islamismo sunita radical) e sua polícia religiosa. De uma só vez, controlavam as largas parcelas da população que não se beneficiavam da súbita riqueza e aplacavam suas consciências culpadas.
Durante várias décadas, o sistema pareceu funcionar bem. Apenas pareceu. A religião, em que pese ter-se tornado a espinha dorsal do regime, dificultou a modernização da economia, que permaneceu inteiramente dependente do petróleo. Como a educação ficou quase inteiramente nas mãos dos wahabitas, os jovens sauditas saíam da escola sabendo pouco mais do que recitar o Alcorão. Eram virtualmente inempregáveis, o que explica a presença de estrangeiros no mercado de trabalho.
Foi só nos anos 80 que a Casa de Saud decidiu estender aos sauditas comuns alguns dos ganhos proporcionados pelo petróleo e construir um sistema de bem-estar social. Já era tarde. Nem todo o petróleo sob o deserto seria suficiente para sustentar sem trabalho uma população que vem crescendo rapidamente e alimentando o desemprego. Até a pequena classe média, que sempre gozou dos benefícios gerados pelo petróleo, está insatisfeita com a repressão e a corrupção da família real, que tampouco pára de crescer, em número de membros e em ganância.
A receita é altamente combustível: fundamentalismo revolucionário e descontentamento generalizado. Nesse contexto, a alta das cotações de petróleo parece menos inexplicável. Provavelmente já é tarde para a Casa de Saud renovar-se e estabilizar-se no poder. Cenários sem a família real soam mais plausíveis. A incógnita é se o Ocidente aceitará um regime liderado pela Al Qaeda sobre as maiores reservas de petróleo da Terra ou se o ciclo de intervenções militares no Oriente Médio está apenas começando.


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