São Paulo, terça-feira, 27 de junho de 2006

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Arquitetura: mero produto de consumo?

JORGE WILHEIM

AS BATALHAS QUE Le Corbusier e os arquitetos modernos do século 20 travavam contra o anacronismo neoclássico datam de 1920. Estamos no Brasil, em 2006. A arquitetura que aqui praticamos tem inequívocos mestres, cujas qualidades foram, no mínimo, apreciadas pelos críticos que conferiram o prêmio Pritzker a Oscar Niemeyer e a Paulo Mendes da Rocha.


Nossa auto-denominada elite não percebe que, a continuar tamanha disparidade de renda, a corda vai arrebentar


Nossa melhor arquitetura nada tem a ver com a estética neoclássica de diversos lançamentos imobiliários. Qual o motivo, então, do aparecimento, em anúncios de jornal, de tantos projetos de estilo anacrônico? Nesse negócio -pois é de negócios que estamos tratando-, quem comanda tais decisões são os responsáveis pelo marketing e pelas vendas, ao embrulhar o produto afirmando: "Isto eu vendo, aquilo eu não vendo". Que empreendedor ousaria contrariar tal afirmação? Quantos arquitetos recusariam o cliente e o trabalho?
Ora, os marqueteiros e os responsáveis pelas vendas são, dentro de seu campo, profissionais competentes, a julgar pelo extraordinário número de lançamentos imobiliários, pois presumo que a tal oferta correspondam vendas. Quais seriam os critérios segundo os quais se "desenha um produto" determinando a cara do empreendimento? Tratando-se sempre de vendas para uma parcela da população dotada de recursos, suponho que os critérios privilegiem modernidade, status e segurança.
Como esse mercado é, em boa parte, constituído por "vencedores recentes", a ostentação também constitui atrativo, embora hoje cheio de riscos. Acreditando que o moderno resida no estrangeiro, a classe média emergente aprecia as expressões "suite master" (sic), "fitness center", "home theatre", "home office", "family room", que figuram obrigatoriamente em anúncios e folhetos.
Creio que a abundância de banheiros também decorra mais de uma oferta de status -pois transformam minúsculos "quartos" em "suítes"- do que das saudáveis raízes indígenas de nossa cultura tropical, afeita à água de rios e cachoeiras. O que resta de bem brasileiro nesses projetos-produto, além da ostentação e dos modismos? A discriminação da circulação comum, evitando que a dos serviçais se confunda com a dos senhores, e a obrigatória churrasqueira.
Quanto à garantia de segurança, desiderato compreensível, ela é geralmente traduzida por altos muros, arame farpado, guaritas, acessos vigiados, câmeras vigilantes e um exército de guardas a encarecer as despesas de condomínio.
Parece-me estar descrevendo um presídio de alta segurança...
Finalmente, quanto ao estilo neoclássico, penso estar relacionado com o desejo subjetivo de segurança: um estilo que reproduz monumentos históricos europeus simboliza permanência, eternidade, um valor seguro a ser atribuído ao patrimônio que se está prestes a adquirir. Desconfio, contudo, que em muitos empreendimentos, a adequação estilística seja obra de um "fachadista", especialista em dar ao projeto de outro arquiteto a cara que garanta a "solidez patrimonial" exigida pelo marketing.
De qualquer modo, representa anacronismo que torna medíocre e falso qualquer projeto. Quem disse ser impossível aliar boa arquitetura contemporânea e oferta habitacional?!
O tema da segurança traz à tona a localização de um empreendimento de notável dimensão, lançado recentemente, assim como assuntos mais sérios. Atrás das futuras obras, situa-se grande e antiga favela, cujos moradores organizaram, em vão, uma comitiva para comparecer ao brilhante e "socialite" lançamento imobiliário, a fim de "dar as boas vindas aos seus novos vizinhos".
Enquanto o povão revela senso de humor, os empreendedores e seus clientes revelam ausência de senso crítico: o maior apartamento de cobertura medirá 1.700 m2, correspondendo a 37 apartamentos do tipo Cohab, e custará R$ 1,8 milhão, o custo de dez casas de classe média.
Nossa auto-denominada elite não percebe que, a continuar tamanha disparidade de renda, alegremente ostentada, a corda, já tão esticada, vai arrebentar. Já que ela, aferrada a seus privilégios, não tem tal sensibilidade, penso ser oportuno que a prefeitura elabore lei municipal sujeitando a aprovação de apartamentos acima de certa área a um investimento, pelo empreendedor, em apartamentos de mercado popular ou de interesse social ou a entrega a um Fundo de Habitação do valor correspondente.
Se os operadores do mercado imobiliário almejam um Brasil moderno e seguro, porém para todos, diminuir a injustiça social torna-se tarefa deles também.
JORGE WILHEIM , 77, é arquiteto e urbanista. Foi secretário de Panejamento Urbano do município de São Paulo (2001-2004), secretário-geral da conferência Habitat 2 da ONU (1994-96), secretário estadual do Meio Ambiente de São Paulo (1987-90), secretário estadual de Economia e Planejamento (1975-79) e presidente da Emplasa.


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