São Paulo, sábado, 27 de julho de 2002

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Os preços dos combustíveis devem voltar a ser controlados?

NÃO

Esse filme eu já vi

DAVID ZYLBERSZTAJN

A emenda constitucional nš 9, de 1995, flexibilizou o monopólio estatal da exploração de petróleo e gás (até então exclusividade da Petrobras) e determinou a criação de um órgão regulador, voltado ao estabelecimento das regras para os novos agentes que deveriam entrar no processo produtivo do setor -como de fato ocorreu.
A lei 9.478 (Lei do Petróleo), de agosto de 1987, disciplinou, além da criação da ANP (Agência Nacional do Petróleo), as diretrizes gerais da política energética nacional, os mecanismos de passagem para um mercado competitivo; criou o CNPE (Conselho Nacional de Política Energética) e estabeleceu um período de transição para a total desregulamentação dos preços do petróleo e derivados (art. 70). Durante essa transição, os preços para as distribuidoras seriam estabelecido pelos ministérios da Fazenda e de Minas e Energia (art. 69). Encerrada a transição, os preços do petróleo e derivados foram liberados, por força legal, em janeiro de 2002. Em resumo: órgão regulador, novos agentes, concorrência e preços livres.
O governo considera que o preço do GLP (o gás de cozinha de botijão) está alto. Vagamente, atribui-se, segundo autoridades, a uma distorção da concorrência os elevados reajustes no preço ao consumidor. Propõe-se um tabelamento, uma ação da ANP semelhante à da Aneel (que fixa as tarifas de energia elétrica), além de uma determinação do CNPE fixando diretrizes para a ANP -uma sucessão de equívocos técnicos, jurídicos e conceituais. A conferir:
Essas propostas jogam por terra toda a política de abertura do setor petrolífero. Investidores diretos ou acionistas da Petrobras (incluindo os pequenos investidores que aí aplicaram seu FGTS) devem estar se perguntando o que poderá vir depois. Não cabe à ANP fixar preços. Combustíveis não são regidos por tarifas, mas, como qualquer commodity, pelas cotações internacionais. Nem a ANP nem outro órgão qualquer do governo podem, legalmente, tabelar preços. A intervenção econômica por meio de fixação de preços não é prerrogativa do órgão regulador.
Por outro lado, a ANP deverá notificar os órgãos de defesa da concorrência, se constatar fatos que possam configurar indícios de infração à ordem econômica (art. 10 da Lei do Petróleo). Já o CNPE é um órgão consultivo da Presidência da República, não tendo competência para regular o preço dos derivados. Suas atribuições, pelo artigo 2, esgotam-se na "proposição de medidas ao presidente da República", que, no caso de derivados, devem contemplar o estabelecimento de "diretrizes" para assegurar "o adequado funcionamento do Sistema Nacional de Estoques Estratégicos". A seta de comandos, portanto, está invertida. Não pode o CNPE baixar, diretamente, nenhuma diretriz para a ANP.
Por último, mas não menos importante, quem paga a conta? Estaremos criando uma nova conta-petróleo e novos rombos no caixa da Petrobras? Queremos ao mesmo tempo aumentar sua capacidade de investimentos, aumentando sua produção e capacidade de refino, cortando suas receitas? E nas empresas que eventualmente queiram (ou, a esta altura, queriam) competir com a estatal? Um tabelamento seria um enorme retrocesso, limitando a entrada de capitais no setor e impedindo uma maior competição ao longo do tempo, com evidentes prejuízos à sociedade.
Viva, pois, a volta do monopólio oficial? Imaginem a Petrobras, que acaba de realizar importante aquisição na Argentina, ser obrigada, pelo governo local, a vender, internamente, seus produto em pesos, com preços tabelados. Grande negócio...
No final das contas, estaremos descartando um dos mais bem-sucedidos programas de atração de investimentos produtivos, de desenvolvimento científico e tecnológico nacional e de imensa quantidade de geração de empregos.
Fim do mistério: a verdadeira explicação para os recentes aumentos resume-se à retirada dos subsídios anteriormente existentes no preço do GLP (como política formal de governo) e à forte expansão do câmbio. A Petrobras ainda detém posição dominante em quase todos os elos da cadeia do petróleo e do gás natural. Essa liberdade de preços deve ser vigiada, dada tamanha assimetria do poder de mercado entre agentes do setor. Tais ações devem, igualmente, ser empreendidas em relação ao oligopólio das empresas distribuidoras de GLP.
Se existem práticas concorrenciais inadequadas, que sejam acionados os mecanismos existentes para coibi-las. Que seja dada mais transparência à política de formação dos preços ao consumidor. Que se estabeleçam subsídios aos consumidores de baixa renda. Que se desenvolvam campanhas de eficiência no uso de combustíveis. Que sejam estabelecidas políticas claras de estímulo a investimentos para implementação da concorrência. Por fim, que não sejam destruídas conquistas estruturais por motivações conjunturais.
Por favor, senhores, não precisamos caçar botijões no pasto.


David Zylbersztajn, 48, engenheiro mecânico, é doutor em economia da energia pela Universidade de Grenoble (França). Foi secretário de Energia do Estado de São Paulo (governo Mário Covas) e diretor-geral da ANP.



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