São Paulo, segunda-feira, 27 de julho de 2009

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Vale tudo

Em espetáculo eleitoreiro e constrangedor, Lula lança o Vale-Cultura, mecanismo duvidoso a ser discutido pelo Congresso

NUM ESPETÁCULO que nada deixou a dever a algumas de nossas mais constrangedoras produções culturais, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva reuniu, em São Paulo, na noite de quinta-feira passada, uma parcela significativa do meio artístico e intelectual para lançar o projeto de lei do Vale-Cultura.
Num daqueles famigerados eventos em que artistas e homens de ideias se comprazem em adular o poder, seja na expectativa de benesses, seja pela simples satisfação de figurar na corte, o presidente, acompanhado da ministra e candidata Dilma Roussef, rememorou agruras de sua cinematográfica biografia e não mentiu ao declarar-se "pouco letrado".
Foi a senha para discorrer em sua conhecida retórica de palanque, recheada de tiradas duvidosas que os áulicos apressam-se em saborear como pitorescos exemplos de autenticidade. Lula abusou ao criticar o fato de a renúncia fiscal, estabelecida pela Lei Rouanet, financiar produtos como "livro de fotografia enorme, pesado que é uma disgrama, e que ninguém vê".
Dando margem a dúvidas sobre a qualidade de sua assessoria, o presidente revelou-se deselegante e mal informado ao afirmar que não há "nenhum centavo" do Itaú nas atividades de seu instituto cultural -quando na realidade cerca de 50% dos recursos aplicados são próprios.
Se quisesse, Lula poderia elogiar outras instituições privadas, como o Instituto Moreira Salles, que não recorre às leis de incentivos, e atacar empresas públicas, geridas pela União, que reforçam a concentração elitista de recursos no eixo Rio-São Paulo -tão criticada pelo Ministério da Cultura- e distribuem dinheiro público para projetos culturais no mínimo questionáveis.
A solenidade teve evidente motivação eleitoral. Mecanismo análogo ao do Vale-Refeição (o pão), o Vale-Cultura (o circo) parece afigurar-se aos olhos do Planalto como uma daquelas iniciativas com potencial de rapidamente se traduzir em votos-ou ao menos, como já ficou demonstrado, no estímulo à complacência de representantes do meio cultural com o lulismo.
Estima-se que a renúncia fiscal, no caso, poderá atingir R$ 2,5 bilhões ao ano, o dobro dos recursos hoje aplicados em cultura por meio da Lei Rouanet. É óbvio que a destinação de dinheiro para o consumo cultural, por menos criteriosa que possa ser, sempre terminará, de alguma forma, revertendo em acréscimo de receita para a indústria do entretenimento -e nesse sentido a inclinação do setor é considerar a ajuda positiva.
Mas não é esse o ponto. Num país em que os recursos governamentais são escassos frente às complexas demandas, é imperioso pensar em prioridades e nos efeitos estruturais dos gastos públicos.
No caso, é de perguntar se, antes de oferecer R$ 50 por mês para o lazer do trabalhador, não seria melhor destinar os recursos para a formação de estudantes. Poderia ser uma tentativa mais eficaz de ampliar a cidadania cultural no país.


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