São Paulo, terça-feira, 27 de setembro de 2005

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CARLOS HEITOR CONY

O cuspe e o tiro

RIO DE JANEIRO - Uma pergunta baila no ar, como aquele vaga-lume do soneto machadiano: diante de tanto descalabro na política nacional, não haverá clima para um golpe de Estado, promovido pelos militares ou mesmo pela sociedade civil indignada com tanta e tamanha corrupção?
Não acredito nessa hipótese. Os golpes de Estado, ao longo da história universal, são desfechados quando há idéias em choque, ou, se quiserem, ideologias antagônicas. Tomando como exemplo mais próximo e que mais nos toca: o golpe de 64 foi executado no contexto da Guerra Fria, quando havia o temor de que o Brasil se tornasse comunista ou uma complicada república sindicalista -o que daria mais ou menos na mesma.
Evidente que havia corrupção naquele tempo, como sempre houve. Mas não foi isso o que motivou os militares a darem o golpe, ajudados por entidades civis como o IPÊS e o IBAD e com o apoio ostensivo dos Estados Unidos, depondo João Goulart e caçando todas as bruxas acusadas de subversão.
Foi assim também na Revolução Russa e na Revolução Francesa. O poder nas mãos de Luís 16, o czarismo nas mãos de Nicolau 2º, não acabaram por causa da decadência moral da monarquia francesa ou das mandingas de Rasputin, que direta ou indiretamente alimentavam a corrupção, talvez maior e mais devastadora do que a nossa.
Foram idéias que levaram o rei à guilhotina e o czar ao fuzilamento. No primeiro caso, venceu o ideal republicano nascido com os enciclopedistas e alimentado por gênios como Danton. No caso russo, venceu o marxismo em versão bolchevista, alimentado por Lênin. Idéias, sempre idéias.
Na crise que agora atravessamos, inexiste o conflito de quaisquer idéias, nem sequer há idéias em jogo. Todos estão do mesmo lado: são éticos, republicanos, transparentes etc. O que existe é a corrupção que corre solta, encolerizando a nação. Muito cuspe e nenhum tiro.


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