São Paulo, terça-feira, 27 de setembro de 2005

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ROBERTO MANGABEIRA UNGER

Aprofundar a democracia

A alternativa de que precisa o Brasil tem três componentes: mudar o modelo econômico, revolucionar o ensino público e construir democracia capaz de acabar com o controle oligárquico do poder. Nenhum dos três pode ir longe sem os outros dois. Erram gravemente os se aferram a um em prejuízo dos outros.
É no terceiro desses três pontos que o debate brasileiro mais vem avançando. Difunde-se a convicção de que o país não conseguirá mudar de rumo sem adotar instituições que facilitem e organizem a participação do povo na política. E que permitam aos cidadãos comuns trocar o sentimento de impotência pela convicção do potencial transformador da ação cívica.
É daí que vem a reivindicação -já esboçada, mas deixada letra morta, na Constituição de 1988- de enriquecer a democracia representativa com elementos de democracia direta. Um desses elementos seria o direito dos eleitores de cassar os mandatos de mandatários infiéis, Outro elemento seria a faculdade dos eleitores de intervir, por meio de plebiscitos, nos impasses entre Poderes do Estado. Tais plebiscitos seriam convocados por proposta de um dos Poderes ou por iniciativa de qualquer movimento que demonstre contar, para isso, com apoio forte no país. Falseiam a tese da radicalização democrática os que a denunciam como ataque contra a democracia representativa. O que ela quer é tornar essa democracia efetiva, em meio aos extremos de desigualdade de que sofremos.
Dois equívocos são comuns entre os defensores da democracia radical no Brasil. O primeiro equívoco é supor que ela seja uma preliminar às outras partes da alternativa nacional. A experiência histórica mostra o contrário: um país só muda suas instituições políticas quando se convence de que precisa mudá-las para quebrar a camisa-de-força que a impede de andar. A reorganização política do país só pode ocorrer no curso da luta para democratizar oportunidades econômicas e educativas. Preliminar mesmo, e capaz de ser consensual, apenas a necessidade de tirar da política a sombra do dinheiro, reformando o financiamento eleitoral e proibindo entendimentos secretos entre governantes e endinheirados.
O segundo equívoco é deduzir do compromisso de enriquecer a democracia representativa com elementos de democracia direta e participativa a conveniência de instaurar o parlamentarismo já. Formas de governo são invenções humanas; seu significado depende do contexto em que funcionam. Pequenas diferenças em sua construção podem surtir vastos efeitos. O eleitorado brasileiro já intuiu, nas repetidas tentativas de lhe impor o parlamentarismo, esforço para confiscar o pouco que nos resta de soberania popular. Se tivéssemos parlamentarismo hoje, todos nossos chefes de governo seriam políticos especializados em cuidar para nada acontecer. O presidencialismo que copiamos dos Estados Unidos, porém, também, não nos serve: foi desenhado para dificultar a transformação da sociedade por meio da política. O caminho é corrigi-lo, dotando-o de mecanismos para a resolução pronta dos impasses tais como plebiscitos abrangentes ou eleições antecipadas. Criam-se, com isso, condições para adotar, na etapa seguinte, um parlamentarismo que não seja de enganação e de esbulho.
Não há salvamento sem política. Não há democracia sem participação. Não há mudança sem calor e sem luz.


Roberto Mangabeira Unger escreve às terças-feiras nesta coluna.
www.law.harvard.edu/unger


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