São Paulo, terça-feira, 27 de setembro de 2005

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

TENDÊNCIAS/DEBATES

E agora, José(s)?

JOSÉ FERNANDES FILHO

Publicada a emenda da Reforma da Previdência Social, começa o longo calvário dos servidores públicos; promulgado o texto da pífia reforma do Judiciário, confirma-se a frustração do jurisdicionado.
Magistrados, membros do Ministério Público, integrantes das carreiras típicas de Estado, todos foram duramente atingidos. Pior: traído e roubado pela desesperança, o povo, fonte do poder, experimentará sucessivas decepções. Até o dia em que, cálice transbordante, vomitará sua revolta.


Por falaciosa moralidade, a demagogia barata nivelou tudo por baixo, equiparado o magistrado ao cortador de cana


Em nome de falaciosa moralidade, a demagogia barata nivelou tudo por baixo, equiparado o magistrado ao cortador de cana.
Sem visão de futuro, deu-se tratamento igual aos desiguais; a arrogância investiu contra inexistente "caixa preta", agora descoberta em outros sítios.
Mudas e nocauteadas, as instituições a tudo assistiram passivamente: a capitulação foi geral. Por ausência de juízo crítico, de pusilanimidade ou por interesses insondáveis, mas sempre de joelhos, a maioria incensou o poder e aspergiu o altar da autoridade.
Palmas e hosanas, abundantes, para os moralistas do dia; pelourinho e chibatadas para os que, em penosa solidão, defendiam princípios ou denunciavam o obscurantismo e a intolerância.
Insidiosa campanha, feita por gente sem alma, contaminou a imprensa, surda ao clamor das minorias, sem voz e voto.
Inquiridor silêncio desceu sobre a sensibilidade nacional, embrutecida pela propaganda oficial, paga com recursos no mínimo "não-contabilizados".
Nunca, em nenhuma quadra da vida, vi espetáculo mais dantesco: ao sacrifício -quase destruição- da magistratura, do Ministério Público, das carreiras típicas de Estado -crime de lesa-pátria- fez-se estranho coro de aplausos, nascido da indiferença ou do aulicismo.
Quem, no futuro, buscará a magistratura ou o Ministério Público, se, após 35 anos de contribuição, amargar aposentadoria pública que não lhe permitirá morrer com dignidade?
Independência, no serviço público, não é necessariamente conseqüência de remuneração decente. Entretanto certa estabilidade financeira, principalmente na velhice, traz segurança a qualquer ofício, exercido por seres humanos que comem, bebem e tomam remédios.
O recrutamento certamente não alcançará os melhores, mas os candidatos possíveis. O futuro dirá se vocacionados ou não para as altas responsabilidades a que foram chamados. E, ainda, se fiéis ao compromisso da investidura ou trêfegos passageiros de uma viagem sem volta.
A chamada reforma do Poder Judiciário, obsessão de governo seduzido pelo capital especulativo, não revela qualquer traço de grandeza. Ao contrário, tem a dimensão e a estatura dos que, goela abaixo, a impuseram à comunidade jurídica.
Violadora do regime federativo, rompe com a autonomia dos Estados e dos tribunais, a quem engessa e amarra em nome de valores recomendados por receituário que veio de fora.
Diabolicamente plantado por marqueteiros laureados, o clima emocionalizado das "reformas" cobrava um epílogo triunfal: anuncia-se, com trombetas, a criação do Conselho Nacional de Justiça (viva o controle externo!) para (sic) controle da atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário!
Condição primeira para a redução da morosidade, a valorização e definitividade das decisões dos tribunais estaduais, salvo se contrárias à Constituição, soaram como heresia aos autores e co-autores da norma canhestra. Aqueles, dirigentes ou dirigidos, rastejantes às ordens do núcleo do poder. Estes, próximos de nós, temerosos de perder competências.
Recorrente, volta a cena surrealista: do Olímpio, os sábios do Planalto condenam a proposta. A condenação (não eram deuses?) atira ao lixo valiosa oportunidade para reforma de verdade.
Sabe-se hoje como tais "reformas" foram arrancadas do Congresso. Tudo permeado por nauseante "solidariedade", fonte de repugnância e indignação.
Assim, com engodos e perjúrios, chegamos, nas duas reformas, à aldeia da fantasia, capricho e vaidade de alguns Josés, transidos de messianismo, e servilismo de outros, sempre agachados.
Os Josés matreiros, de bem com o poder; os Josés autoritários, encarnação do poder; os Josés intolerantes, prontos para condenar antes de julgar, ignoravam -todos eles- que, mais dia menos dia, teriam de prestar contas à sociedade. A execração a que nos submeteram, agora espontânea, enxota-os da vida pública.
Se aqui estivesse, Carlos Drummond, modesto servidor público, mas guardião dos valores de Minas, faria a pergunta não a um, mas a vários Josés. E de todos cobraria catártico arrependimento, incapaz, todavia, de minorar o prejuízo à democracia, que não existe sem Judiciário independente e Ministério Público vigilante. De pé, nunca de cócoras.

José Fernandes Filho, 75, desembargador, é presidente da Comissão Executiva do Colégio Permanente de Presidentes de Tribunais de Justiça do Brasil. Foi presidente do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais.
@ - colpres@tjmg.gov.br



Texto Anterior: TENDÊNCIAS/DEBATES
Plínio de Arruda Sampaio: Por que não mais PT?

Próximo Texto: Painel do leitor
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.