São Paulo, domingo, 27 de outubro de 2002

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EMPREGO, RENDA, CIDADANIA

O presidente que será eleito hoje já assumiu um compromisso fundamental com os brasileiros. Seja Luiz Inácio Lula da Silva, seja José Serra, o sucessor de Fernando Henrique Cardoso se comprometeu com o resgate da dívida social, que nos últimos anos aumentou pelo acréscimo de desemprego e violência (em níveis dos mais altos da história) a seu enorme e secular estoque. Mais emprego, renda e cidadania são as prioridades dos dois candidatos.
Um julgamento conclusivo do ciclo político de FHC é tarefa para o futuro. Mas, à luz da herança até aqui perceptível de seus dois mandatos, é possível compreender por que o principal mote da campanha eleitoral foi o da mudança. Todos os candidatos, em maior ou menor grau, se apresentaram como veículos dessa aspiração. A própria candidatura Serra representou um contraponto ao grupo e ao ideário que comandam a política econômica desde a implantação do Plano Real.
O legado ambivalente do Real esteve no centro da campanha. A estabilidade de preços, a responsabilidade fiscal e o realismo orçamentário foram conquistas não apenas do governo, mas do conjunto das instituições. Nenhum candidato ousou questioná-las. E o presidente que, por incompetência ou populismo, permitir a volta da inflação descontrolada e da indexação estará politicamente condenado.
Mas é também herança do Real a ameaça à estabilização. Cada cidadão sente -seja porque o aumento do ritmo da subida de preços já lhe corrói a renda, seja porque os empregos escasseiam- que é preciso mudar para preservar as conquistas. Não é por outra razão que os dois candidatos que hoje disputam a Presidência adotaram plataformas reformistas para a economia.
Com o plano de 1994 foi dado um passo fundamental rumo à estabilização. Faltaram, porém, outros passos que completariam e dariam sustentação àquele primeiro. A estabilização foi mantida com artifícios como o câmbio prolongadamente supervalorizado e o altíssimo endividamento público e privado, que agora cobram seu preço.
Nenhuma estabilização está completa num país em que, durante anos a fio, se praticam os juros mais altos do planeta. Historicamente dependente do capital estrangeiro, o Brasil chega ao fim de uma década de abertura econômica e financeira ainda mais perigosamente vulnerável aos humores dos mercados internacionais. Reformas fundamentais para dar estabilidade às contas do Estado e competitividade à atividade econômica não foram feitas, quer por inação do governo, quer por resistência do Congresso.
Os desafios estruturais permanecem os mesmos. A novidade é que o próximo presidente terá de perseguir esses objetivos em meio a uma crise financeira que atinge o centro do capitalismo global, causando retração brutal do fluxo de dólares para as periferias mais endividadas. Essa circunstância só torna as reformas no Brasil mais importantes e urgentes.


Não há caminho fácil para que o sucessor de FHC cumpra suas principais promessas. As dezenas de milhões de votos que receber hoje virão de um eleitorado mais amadurecido


Impõe-se uma política objetivando a redução sustentada da vulnerabilidade externa. Mecanismos públicos e privados de crédito, ação normativa e reguladora do Estado e a criatividade de empresários, trabalhadores, políticos, burocratas e estudiosos devem ser mobilizados num esforço de promover exportações, substituir importações e privilegiar políticas públicas e atividades que não consumam divisas.
É necessária uma reforma previdenciária que, pelo menos, crie um sistema universal para os novos ingressantes; uma reforma nos tributos que desonere o setor produtivo, transferindo carga de impostos para o consumo e para rendas mais altas; uma reforma trabalhista que favoreça as negociações livres entre representantes de patrões e empregados.
No plano político-institucional, o notável avanço desde a redemocratização foi coroado por FHC, que se comportou exemplarmente ao longo da campanha e que estabeleceu um processo de transição para o próximo governo de inédita maturidade. Infelizmente o seu governo e a sua ampla base parlamentar não se dedicaram com o mesmo afinco à aprovação de uma reforma política que, no mínimo, desse cabo da infidelidade partidária. A liberdade absoluta de trocar de legenda permanece como um dos mais importantes problemas da representação política. Precisa ser enfrentado rapidamente.
Em relação à saúde e à educação, uma conjunção entre garantias constitucionais conquistadas e gestão ministerial competente contribuiu para que a situação nesses setores esteja melhor do que há oito anos, embora ainda haja muito por fazer. Na educação, por exemplo, é preciso cuidar mais da qualidade do ensino e melhorar o acesso aos níveis pré-escolar e universitário, que ainda privilegia classes de renda mais alta.
Uma inovação positiva na área social seria a consolidação de um grande programa nacional de renda mínima, o que demandaria, para não aumentar o gasto público, realocação orçamentária e articulação de diversos programas que existem em Estados e municípios. É essencial a formulação de uma política pública de desenvolvimento para as grandes aglomerações urbanas, de forma a corrigir a urbanização precária e a apoiar a juventude pobre que em regra habita as periferias. É o plano de resgate da cidadania de que o Brasil mais necessita neste momento.
Não há caminho fácil para que o sucessor de Fernando Henrique Cardoso cumpra suas principais promessas. As dezenas de milhões de votos que receber hoje virão de um eleitorado fustigado pelas crises e pela estagnação da qualidade de vida. Virão, igualmente, de um eleitorado mais amadurecido, que deveria rejeitar qualquer "solução" populista que se exima de enfrentar obstáculos históricos ao crescimento econômico sustentável e à distribuição da renda e do bem-estar social.


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