São Paulo, quinta, 28 de janeiro de 1999

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Cinema global

OTAVIO FRIAS FILHO

Nos marcos do que o cinema brasileiro fez até agora, "Central do Brasil" é um filme extraordinário. Pelo padrão técnico, pela qualidade de roteiro e câmera, pelo desempenho de Fernanda Montenegro ele é um exemplo, que a arte oferece à economia, da "competitividade do produto nacional num mundo globalizado".
Entre seus muitos méritos -narrativa consecutiva, desfecho redentor, doses exatas de sentimento- está o de ser, talvez, o primeiro filme brasileiro capaz de comover às lágrimas. Vários dos filmes da safra recente, pós-Collor, tinham seus bons momentos. Sob a influência da publicidade, o nível técnico melhorou muito.
Mas a regularidade de nível atingida por "Central" só tem paralelo nos melhores filmes de Hector Babenco, que afinal nunca deixou de ser argentino, como ilustra bem seu último trabalho. O filme de Walter Salles vem completar a sequência de filmes dos últimos anos, cada um ligeiramente melhor que o anterior.
O objetivo desses filmes vinha sendo, ainda que inconscientemente, dominar a linguagem do cinema internacional no seu atual estágio técnico. Eles retomam o "programa" do cinema brasileiro nos anos 50, que era o de se aproximar tanto quanto possível dos cânones do cinema americano, já então o melhor do mundo.
A evolução "imitativa" foi interrompida brutalmente no começo dos anos 60 pela aparição de um profeta que escolheu o cinema como meio de expressão: Glauber Rocha. Sob influência do cinema experimental europeu e de suas próprias visões telúricas, o cinema de Glauber era antiamericano: pobre, poético, radical e discursivo.
Em sua melhor fase, o Cinema Novo foi um momento de afirmação, ao mesmo tempo nacionalista e alternativa, da identidade imagética do país. O longo período de decadência que se seguiu, no entanto, do final dos 60 em diante, não pode ser atribuído apenas aos vícios do sistema de patotagem que caracterizou a Embrafilme.
O talento mais fecundo de cineasta que já tivemos deixou um legado de esterilidade. Deve-se em parte a Glauber Rocha a tendência a substituir o profissionalismo pela inspiração, o gosto do público pelos caprichos do diretor, a ação pelo discurso. É fácil imaginar no que a fórmula resultou quando aplicada por epígonos.
Nada mais justo que a expectativa de que "Central do Brasil", depois de todos os prêmios, ganhe o Oscar de filme estrangeiro. Além de abrir uma oportunidade valiosa para o cinema brasileiro, esse reconhecimento o colocaria no centro do cinema mundial. Significa, também, sua reassimilação pelo cinema americano.
É como se os riscos da internacionalização na economia e na arte fossem semelhantes, e no caso do cinema implicassem renunciar à autonomia criativa que o Cinema Novo pretendeu. "Central", dados os seus méritos, resolve bem essa equação, mas criou um Brasil para estrangeiro ver e onde os brasileiros estão gostando de se mirar.


Otavio Frias Filho escreve às quintas-feiras nesta coluna.



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