São Paulo, quinta, 28 de janeiro de 1999

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O desmantelamento do CNPq


O CNPq certamente precisa de uma reforma profunda. Mas uma coisa é reformá-lo, outra é desmantelá-lo


EUNICE DURHAM

Ante a gravidade da crise econômica, qualquer outra preocupação que não seja com a necessidade inadiável de uma união nacional para assegurar a viabilidade do futuro do país pode parecer inteiramente descabida. Entretanto, não é bem assim. Com ou sem crise, a viabilidade do país depende também da preservação de políticas e de ações governamentais que dão sustentação ao conjunto dos setores essenciais ao desenvolvimento e ao bem-estar da nação. Um desses é o de ciência e tecnologia.
Na composição do novo ministério, escolheu-se para esse setor uma pessoa de muitas virtudes. O ministro Bresser Pereira é um economista e um intelectual preocupado com as questões da inovação tecnológica, da formação de recursos humanos altamente qualificados, da modernização administrativa e da racionalização do uso dos recursos públicos. Na previsão de uma época de vacas magras, em termos de recursos orçamentários, a escolha de um ministro com esse perfil pode se revelar altamente estratégica para preservar a ciência nacional e promover contribuições tanto para a competitividade econômica como para soluções de problemas sociais.
Entretanto, apesar de um perfil tão favorável, as recentes iniciativas tomadas pelo ministro são extremamente preocupantes, pois podem colocar em risco o próprio arcabouço institucional que permitiu ao país uma situação de liderança científica na América do Sul e nos países em desenvolvimento.
Isso decorreu de uma política extremamente inovadora, formulada na década de 60, que colocou tanto a formação de recursos humanos de alto nível como a pesquisa fora da pesada e sufocante burocracia estatal.
Foram criadas duas agências de fomento, dotadas de ampla autonomia e com forte interface com a comunidade científica e acadêmica. Agências de fomento não fazem elas próprias as pesquisas nem formam os recursos humanos. Elas apóiam, estimulam e auxiliam o desenvolvimento desses setores em universidades e institutos de pesquisa. Foi por isso que a Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) e o CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) constituíram uma revolução bem-sucedida em termos de políticas públicas.
A receita não é de invenção brasileira. Em todos os países nos quais ocorreu um grande desenvolvimento científico e tecnológico, o processo foi semelhante. Colocou-se a pesquisa ao abrigo de interesses políticos imediatistas e de pressões fisiológicas com a criação de órgãos relativamente autônomos, que estimularam a atividade científica pelo financiamento de projetos apresentados pelos pesquisadores e avaliados por comissões de pares. A associação entre autonomia, avaliação e financiamento foi o segredo do sucesso.
É verdade que as agências também envelhecem. O CNPq certamente precisa de uma reforma profunda, e a comunidade científica tem muita consciência disso. Mas uma coisa é reformá-lo, outra é desmantelá-lo. A iniciativa do ministro de assumir, além do ministério, também a presidência do CNPq destrói a autonomia que, em maior ou menor grau, a agência sempre preservou. Mesmo durante o período mais repressivo do governo militar, o CNPq manteve com independência a interlocução com os cientistas. Estes preservaram sua influência na distribuição dos recursos, insistindo na manutenção do critério da avaliação autônoma pelo mérito dos projetos.
Igualmente preocupante é a proposta de divisão do CNPq em dois ou três órgãos independentes, fragmentando o campo científico, dificultando a interdisciplinaridade e a interlocução necessária, mesmo que conflituosa, entre as diferentes áreas de conhecimento.
O ministro certamente pretende estimular o desenvolvimento científico, e não o prejudicar. Mas o problema é outro. É que, criado esse precedente, que pode se perpetuar no futuro, a agência passa a depender inteiramente da boa vontade do ministro de plantão. Podia haver e houve, no passado, inúmeros conflitos entre a agência e o ministério. Mas conflitos são também uma forma de diálogo e só ocorreram porque se havia preservado algo de essencial: o papel da comunidade científica como parceira na formulação das políticas, na distribuição dos recursos e na definição dos rumos da ciência no país, o que foi responsável pela coerência da política científica ao longo de diferentes governos.
É necessário repensar essas questões e consultar e ouvir a comunidade científica, como parece ser a intenção do ministro. Afinal, o Executivo não tem o monopólio nem do saber nem da competência e precisa respeitar e valorizar a autonomia de instituições que logram estabelecer uma parceria produtiva entre o Estado e a sociedade civil, como é o caso do CNPq.


Eunice Ribeiro Durham é presidente do Conselho Diretor do Nupes (Núcleo de Pesquisa sobre Ensino Superior da USP). Foi secretária de Política Educacional do Ministério da Educação e do Desporto (1995-1997).




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