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São Paulo, sexta-feira, 28 de fevereiro de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

A previdência e a produtividade

ROGÉRIO CEZAR DE CERQUEIRA LEITE

Um minucioso estudo elaborado por J. Oeppen e J. Vaupel, da Universidade de Cambridge (Inglaterra) e do Instituto Max Planck de Pesquisas Demográficas (Alemanha), respectivamente, e publicado, em 10/5/02, na prestigiosa revista "Science" derrotou uma crença que está na base de muitas das instituições formais e culturais que regulam a vida moderna na sociedade.
Essa convicção, que perpassa todas as instituições de importância para a humanidade, é a de que, embora atualmente crescente, a expectativa de vida do Homo sapiens alcançará, cedo ou tarde, um limite, como tudo na vida.
Pois bem, o trabalho acima mencionado mostra que não há razões concretas para tal crença. Muito pelo contrário, tudo indica que a expectativa de vida pode continuar crescendo indefinidamente. Durante muito tempo essa conclusão iludiu a percepção de demógrafos, porque a primazia na expectativa de vida flutuava de um país para outro, embora voltasse, por vezes, para um mesmo povo.
Desde 1840 a expectativa de vida da mulher vem crescendo, para o país que está na primeira colocação no momento considerado, a uma taxa de três meses por ano. A do homem também vem crescendo continuamente, mas a um ritmo um pouco menor. Aqui, chegamos a uma primeira conclusão, um pouco incômoda. Cedo ou tarde a população de mulheres será o dobro da masculina. Elas comandarão, com isso, a sociedade. Em compensação, para cada mancebo haverá duas velhinhas. Vai por terra, portanto, uma primeira instituição: a monogamia.
Argumentos de natureza biológica, entretanto, permitem estimar que haveria um limite final de 120 anos para a expectativa de vida humana, o que seria atingido em 160 anos, de acordo com as previsões de Oeppen e Vaupel. Não obstante também é possível que novos desenvolvimentos tecnológicos venham a remover esses constrangimentos de natureza biológica.
Uma das instituições que será imediatamente afetada será o sistema previdenciário, que terá de ser reformulado para responder a esta condição, o que significa que deverá ter uma grande flexibilidade. O tempo de duração do trabalho efetivo deverá crescer continuamente se o princípio de que o trabalho de hoje deve sustentar o aposentado de amanhã for mantido. Neste caso, o do aumento contínuo do período de trabalho ativo, bastaria elaborar um algoritmo elementar, algébrico. A única alternativa seria aumentar continuamente a contribuição pevidenciária. Entretanto esta última opção se tornaria insuportável muito cedo.
É claro que resta ainda uma solução como a que Swift propôs para a população infantil da Irlanda, a gastronômica, o que poderia se tornar uma contribuição ao programa Fome Zero. Um período fixo de aposentadoria e, então, uma solução higiênica seria tomada.
Todavia um outro fenômeno, ainda mais severo, catastrófico quase, já começa a prevalecer.
Comecemos com um exemplo simples, porém assustador. Recentemente, não mais que há 20 anos, chegaram ao Brasil os primeiros robôs, chamados "pick-and-place", para a nossa incipiente indústria eletrônica. Hoje uma máquina moderna desse tipo, operada por um único trabalhador, substitui pelo menos uma centena de operários. Ou seja, houve um aumento de produtividade de um fator de cem em 20 anos.
Argumentar-se-á que este é um segmento pouco expressivo de um único setor industrial. Pois bem, a tabela nesta página demonstra que este é um fenômeno absolutamente geral. Nela estão incluídos países em vários estágios de desenvolvimento. E podemos considerar esses exemplos atuais como uma aproximação aceitável do desdobramento histórico típico para os países, embora condições políticas, acesso a tecnologias etc. estejam em evolução.


Nenhum país desenvolvido mantém uma parcela significativa de sua força de trabalho na agricultura


Observamos, por exemplo, que os EUA mantêm na agricultura cerca de 2,4% de sua força de trabalho e que a produtividade é de US$ 39 mil por trabalhador; e o Brasil, por outro lado, tem 22,3% de sua força de trabalho nesse mesmo setor, com uma produtividade de apenas US$ 1.500 por trabalhador.
A reforma agrária não pode ser considerada, portanto, senão como uma solução assistencial temporária. Nenhum país desenvolvido mantém uma parcela significativa de sua força de trabalho na agricultura. São constrangimentos culturais ou políticos que mantêm percentuais dessa força relativamente elevados em países como Japão, Itália e França -percentuais estes que certamente se dissiparão em uma ou duas gerações.
O que também se pode depreender do quadro acima é que a evolução tecnológica inicialmente libera mão-de-obra do setor agrícola, que é absorvida pelo setor manufatureiro -que em seguida a libera, por força do aumento de produtividade, para outros setores, tais como de comércio, de serviços, financeiro etc. Por outro lado, esses setores, também em sua maioria, começam, com os avanços tecnológicos em comunicações, informática, logística, matemática aplicada etc., a aumentar suas respectivas produtividades.
Muitos países responderam a esse permanente aumento de produtividade, até o presente, com a redução da jornada de trabalho. Mas esta proposta teria consequências adversas para o Brasil, cujos índices de produtividade são em todos os setores muito inferiores aos dos países mais desenvolvidos, inclusive alguns de seus concorrentes comerciais imediatos, como Canadá, Austrália e Argentina.
Como poderíamos, pois, conciliar o aumento de expectativa de vida com um inelutável aumento de produtividade e, simultaneamente, assegurar ao cidadão uma vida digna até a sua morte?
Para resolver esse problema, qualquer que seja a solução que venha o Brasil a adotar, dois ingredientes são imprescindíveis: vontade política e muita tecnologia, sem as quais não há como aumentar a produtividade e, consequentemente, a riqueza do país.
A proposta recentemente apresentada por sindicatos ao governo Lula, pela qual empresas contribuiriam para a Previdência de acordo com seus faturamentos, é muito atraente do ponto de vista social e seria aceitável em um país e em um mundo socialistas. Todavia essa solução penaliza as empresas mais produtivas em benefício das menos eficientes. Em um país de economia capitalista e em um mundo globalizado, seria suicídio. Qualquer que seja a solução para a previdência, ela não pode contrariar a busca incessante de aumento de produtividade da empresa nacional.

Rogério Cezar de Cerqueira Leite, 71, físico, é professor emérito da Unicamp e membro do Conselho Editorial da Folha.


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