São Paulo, domingo, 28 de março de 2004

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A culpa nossa de cada dia


Jesus não fundou nenhuma religião, nasceu judeu e em nenhum momento negou sua identidade

JAIME PINSKY

Talvez algum jurista possa me dizer quantos anos depois de cometido o crime prescreve. E um sábio em ética me explicar por quantas gerações uma pena deve ser cumprida.
No caso dos jovens alemães de hoje, de 20 ou 30 anos de idade, terão eles responsabilidade sobre os crimes nazistas cometidos -efetivamente cometidos- algumas décadas antes de eles terem nascido, por seus pais ou avós? Por que então essa discussão absurda sobre uma culpa histórica, dos judeus de hoje, de um crime, o deicídio, que nem ao menos foi cometido por seus ancestrais?
Os judeus de hoje não são descendentes diretos de Davi e Salomão. Se já na Antiguidade a miscigenação era muito grande, o que não dizer depois que os judeus se espalharem pelo mundo? Hoje, apenas racistas filo e anti-semitas pretendem estabelecer vínculos de sangue que a história rejeita, por absurdos. Nem sequer a observação empírica sustenta essas teses. Qualquer observador atento que caminhe pelas alamedas do clube A Hebraica, de São Paulo, ou pelas ruas de Tel Aviv observará uma variedade racial enorme: há loiros e morenos, altos e baixos, delgados e troncudos e, para acabar com certos argumentos, uma grande variedade de apêndices nasais, do desanimado nariz adunco aos finos e arrogantes, não faltando até uns largos e achatados. Cabelos vão do loiro palha ao negro "asa de graúna", passando pelos ruivos e os simplesmente marrons.
Se alguém recorrer ao formato da cabeça como elemento diferencial (Hitler dizia que arianos eram dolicocéfalos e judeus, braquicéfalos), o resultado também será desanimador para qualquer racista: as temidas "cabeças judaicas" podem ser redondas ou compridas, pequenas ou grandes, com queixinhos mínimos ou poderosos maxilares.
Isso decorre do fato de a propalada continuidade do povo judeu nunca ter existido, como provo no meu livro "Origens do Nacionalismo Judaico". Os autodeclarados judeus de hoje são fruto de complexa mescla, em que parcelas importantes de outros povos se "judaizaram" (por convicção ou interesse), enquanto grupos importantes de judeus abriram mão de sua identidade (também por interesse ou convicção). O irônico dessa história toda é que talvez haja, entre os anti-semitas de hoje, descendentes diretos dos judeus do tempo de Jesus; e, entre os judeus de hoje, chamados assassinos de Deus, descendentes de ucranianos, kázaros e alemães.
Alguém poderá alegar que o problema não é racial, mas cultural, de onde os judeus de hoje seriam descendentes culturais dos de há 20 séculos, independentemente dos laços de sangue. Ora, toda religião é histórica, e com o judaísmo não é diferente. Afora para uns poucos fundamentalistas, o judaísmo não é mais o mesmo de então: sua sobrevivência tem a ver com sua capacidade de adequação, guardados os valores básicos (sobre os quais, por sinal, há muita divergência). Enfim, os judeus não são os mesmos. Mas e se fossem?
Mesmo assim alguns pontos precisam ser assinalados:
Jesus seguramente existiu, mas, embora tenha se tornado o homem mais influente da história, os documentos de época não nos permitem afirmar que sua vida e morte tenham conturbado tanto o ambiente em que atuou como, compreensivelmente, querem fazer crer os seus seguidores;
Jesus não fundou nenhuma religião, nasceu judeu, fez o bar-mitzvá (cerimônia de maioridade) como qualquer judeu e em nenhum momento negou sua identidade. O cristianismo é uma criação posterior, tendo como base a pregação de Jesus, a negação do templo e uma série de práticas do paganismo;
quem dava as ordens na Palestina eram os romanos. A crucificação não era um castigo judaico, mas romano. Jesus foi uma das centenas de vítimas desse castigo que o poder romano infligia àqueles que considerava seus inimigos.
Por que, então, os judeus apareceram como vilões da história? A resposta, uma vez mais, está na história: não tendo maior sucesso em espalhar o cristianismo entre os judeus, os apóstolos -Paulo, de uma forma especial- perceberam que o espaço possível de proselitismo estava no Império Romano. Perceberam, também, que o seu rival mais próximo, portanto o que devia ser combatido com maior fervor, era o judaísmo. Daí o início de "leituras" antijudaicas, e não anti-romanas, das palavras de Jesus, como lembra bem o insuspeito historiador cristão Paul Johnson em sua excelente "História do Cristianismo".
Com o tempo, muito tempo, as coisas começaram a mudar. Do ponto de vista religioso, ninguém vê contradição no fato de o criador de uma religião se originar de uma outra. Mas fica difícil demonizar aquela que deu origem ao Salvador, daí as mudanças que o Vaticano promoveu na sua leitura sobre os mesmos textos.
Porém, no mundo do espetáculo, a coisa é diferente. Para não causar nenhuma dificuldade aos espectadores, os antigos diretores de faroestes vestiam seus vilões com roupas escuras e os mocinhos com roupas claras. Para evitar que o público confunda Jesus com os judeus, Mel Gibson não lhe atribui a mesma roupa dos demais. Não por acaso, o Jesus de Gibson fala latim, algo inverossímil em uma região em que a língua franca, falada pelos judeus e pelos seus vizinhos, era o aramaico.
Truquinhos, espertezas, malandragens de diretor que tinha o objetivo de, além de ganhar dinheiro, descaracterizar Jesus como judeu, opondo-o deliberadamente aos demais e deslocando sua figura, assim como a do cristianismo, de seu contexto histórico. Afinal, "mocinho é mocinho e bandido é bandido".

Jaime Pinsky, 64, historiador, é professor livre-docente da USP e titular da Unicamp.


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