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TENDÊNCIAS/DEBATES
Esperando o papa e a surpresa
CANDIDO MENDES
Ratzinger tem o maior equipamento intelectual dos pontífices da modernidade. Não perderá o muito especial marco brasileiro
BENTO 16 faz em maio próximo a
sua primeira viagem transatlântica. João Paulo 2º chegou à
América Latina pelo México, em Puebla. Ratzinger começará pelo maior
país católico e, ao mesmo tempo, o de
maior expansão do evangelismo de
massa do mundo.
O pontífice preside a nova conferência latino-americana, após o longínquo encontro de Santo Domingo.
Na agenda previsível para atender a
longa espera, o Vaticano já prefigura a
temática, em que o atual secretário de
Estado, Bertoni, acompanha as linhas
mestras de seu antecessor, o cardeal
Sodano. Vem de repeti-las no primeiro encontro com o governo italiano.
A igreja convive com uma sociedade pluralista, mas reitera seu direito à
inflexibilidade doutrinária e ao anúncio voltado primariamente à defesa
da vida, da família e da juventude, à
luta contra a violência e à defesa da
solidariedade internacional, a partir
do escândalo universal da pobreza.
Não se encontrará, talvez, no mundo, país mais disposto que o nosso ao
anúncio da esperança, nesse testemunho de uma igreja "versus populo"
do pós-concílio a assentar o enlace
comunitário de seu colégio episcopal.
Ao longo das décadas, é o que levou
a CNBB à linha de frente contra a discricionariedade militar, mesmo
apoiado nas validações oficiais da fé, e
trouxe a igreja à criação de uma consciência popular e efetiva para a verdadeira mudança social. É nesse mesmo
exemplo que o papa a encontrará agora, em contraste com os evangelismos
eletrônicos do profissionalismo da fé,
em que a disponibilidade básica para
a boa nova também se multiplica.
Mesmo ao preço do seu aventureirismo político ostensivo ou da incriminação penal pela extorsão do dízimo.
A agenda inicial de Santo Domingo
foi modificada pela força da colegialidade latino-americana, garantindo o
mesmo adensar-se em Aparecida, no
compromisso com o "sinal dos tempos", com a militância da mudança,
quando o país mais católico é também
o de maior contraste na distribuição
da riqueza, e tem a igreja posição decisiva na cobrança desse advento de
condições de "bem-estar" social.
João Paulo 2º deu-nos a igreja-espetáculo e a força de sua presença no
mundo dos novos gentios, no quadro
da intensa secularização do nosso
tempo e da dita irrelevância crescente da questão religiosa para o progresso da civilização.
Ratzinger tem o maior equipamento intelectual dos pontífices da modernidade e o trouxe à medula da polêmica das idéias na angústia da consciência do que sejam razão e religião
no seio da história. Não perderá o especialíssimo marco brasileiro para
lhe dar, até, um cunho profético, num
país em que a força do seu episcopado
o deslocou do seu passado de estrita
cristandade e lhe empresta uma missão tão para além do missionarismo
das simples catequeses, como apontado hoje na Índia ou no centro africano, como os focos do reverdecer do
catolicismo em nossos dias.
Dom Aloísio Lorscheider, então
presidente da CNBB, ante João Paulo
2º, em Puebla, falou da injustiça estrutural de países como o Brasil e de
como o marginal nada tem de comum
com o pobre bíblico, deixado às exortações da caridade e da boa consciência. É parte da igreja encarnada, como
repetiu o documento final de Santo
Domingo, a ação concreta pela mudança, e não vai à política de partido o
empenho pela quebra da inércia do
status quo e seus conformismos.
Também não ficaria no horizonte
da mais incisiva das esperas pela palavra do novo papa o estrito reconhecimento de um passado quase que remoto de canonizações de uma igreja
do século 18 diante das urgências de
um aqui e agora e a doação extrema
do que seja, na ação religiosa, o efetivo
reconhecimento do outro, nas suas
urgências e na sua destituição radical.
A agenda de relevância desse "que
fazer" da igreja pede resposta à expectativa de um laicato no múnus a que o
chamou o concílio, tal como lembrou
sempre Alceu Amoroso Lima, ou a urgência da mudança, que não se entregam ao progressismo das boas consciências instaladas. A lição da "Gaudium et Spes" excede a predica normativa para fazer da sua docência o
testemunho concreto em que, hoje, o
compromisso comunitário foi adiante do anúncio, tão generoso quanto
sôfrego, da aspiração libertadora.
O Brasil é um novo cenário para a
surpresa do papa da reflexão crítica,
brotada no nervo da ação pastoral.
Depois do dito discurso antiislã, na
Alemanha, se voltou, em Istambul,
para Meca e a oração dos muezzins.
Não somos, convencionalmente, país
de missão nem de catolicismo nostálgico, mas do profetismo emergente
no crivo da denúncia da injustiça social e da marginalização coletiva. A
impaciência em fazê-lo é a do próprio
clamor de Paulo 6º, pelo "mais ser do
homem todo -e de todos os homens".
CANDIDO MENDES, 78, membro da Academia Brasileira
de Letras e da Comissão de Justiça e Paz, é presidente do
"senior Board" do Conselho Internacional de Ciências Sociais da Unesco.
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