São Paulo, quarta-feira, 28 de março de 2007

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Esperando o papa e a surpresa

CANDIDO MENDES

Ratzinger tem o maior equipamento intelectual dos pontífices da modernidade. Não perderá o muito especial marco brasileiro

BENTO 16 faz em maio próximo a sua primeira viagem transatlântica. João Paulo 2º chegou à América Latina pelo México, em Puebla. Ratzinger começará pelo maior país católico e, ao mesmo tempo, o de maior expansão do evangelismo de massa do mundo.
O pontífice preside a nova conferência latino-americana, após o longínquo encontro de Santo Domingo. Na agenda previsível para atender a longa espera, o Vaticano já prefigura a temática, em que o atual secretário de Estado, Bertoni, acompanha as linhas mestras de seu antecessor, o cardeal Sodano. Vem de repeti-las no primeiro encontro com o governo italiano.
A igreja convive com uma sociedade pluralista, mas reitera seu direito à inflexibilidade doutrinária e ao anúncio voltado primariamente à defesa da vida, da família e da juventude, à luta contra a violência e à defesa da solidariedade internacional, a partir do escândalo universal da pobreza.
Não se encontrará, talvez, no mundo, país mais disposto que o nosso ao anúncio da esperança, nesse testemunho de uma igreja "versus populo" do pós-concílio a assentar o enlace comunitário de seu colégio episcopal.
Ao longo das décadas, é o que levou a CNBB à linha de frente contra a discricionariedade militar, mesmo apoiado nas validações oficiais da fé, e trouxe a igreja à criação de uma consciência popular e efetiva para a verdadeira mudança social. É nesse mesmo exemplo que o papa a encontrará agora, em contraste com os evangelismos eletrônicos do profissionalismo da fé, em que a disponibilidade básica para a boa nova também se multiplica.
Mesmo ao preço do seu aventureirismo político ostensivo ou da incriminação penal pela extorsão do dízimo.
A agenda inicial de Santo Domingo foi modificada pela força da colegialidade latino-americana, garantindo o mesmo adensar-se em Aparecida, no compromisso com o "sinal dos tempos", com a militância da mudança, quando o país mais católico é também o de maior contraste na distribuição da riqueza, e tem a igreja posição decisiva na cobrança desse advento de condições de "bem-estar" social.
João Paulo 2º deu-nos a igreja-espetáculo e a força de sua presença no mundo dos novos gentios, no quadro da intensa secularização do nosso tempo e da dita irrelevância crescente da questão religiosa para o progresso da civilização.
Ratzinger tem o maior equipamento intelectual dos pontífices da modernidade e o trouxe à medula da polêmica das idéias na angústia da consciência do que sejam razão e religião no seio da história. Não perderá o especialíssimo marco brasileiro para lhe dar, até, um cunho profético, num país em que a força do seu episcopado o deslocou do seu passado de estrita cristandade e lhe empresta uma missão tão para além do missionarismo das simples catequeses, como apontado hoje na Índia ou no centro africano, como os focos do reverdecer do catolicismo em nossos dias.
Dom Aloísio Lorscheider, então presidente da CNBB, ante João Paulo 2º, em Puebla, falou da injustiça estrutural de países como o Brasil e de como o marginal nada tem de comum com o pobre bíblico, deixado às exortações da caridade e da boa consciência. É parte da igreja encarnada, como repetiu o documento final de Santo Domingo, a ação concreta pela mudança, e não vai à política de partido o empenho pela quebra da inércia do status quo e seus conformismos.
Também não ficaria no horizonte da mais incisiva das esperas pela palavra do novo papa o estrito reconhecimento de um passado quase que remoto de canonizações de uma igreja do século 18 diante das urgências de um aqui e agora e a doação extrema do que seja, na ação religiosa, o efetivo reconhecimento do outro, nas suas urgências e na sua destituição radical.
A agenda de relevância desse "que fazer" da igreja pede resposta à expectativa de um laicato no múnus a que o chamou o concílio, tal como lembrou sempre Alceu Amoroso Lima, ou a urgência da mudança, que não se entregam ao progressismo das boas consciências instaladas. A lição da "Gaudium et Spes" excede a predica normativa para fazer da sua docência o testemunho concreto em que, hoje, o compromisso comunitário foi adiante do anúncio, tão generoso quanto sôfrego, da aspiração libertadora.
O Brasil é um novo cenário para a surpresa do papa da reflexão crítica, brotada no nervo da ação pastoral.
Depois do dito discurso antiislã, na Alemanha, se voltou, em Istambul, para Meca e a oração dos muezzins.
Não somos, convencionalmente, país de missão nem de catolicismo nostálgico, mas do profetismo emergente no crivo da denúncia da injustiça social e da marginalização coletiva. A impaciência em fazê-lo é a do próprio clamor de Paulo 6º, pelo "mais ser do homem todo -e de todos os homens".


CANDIDO MENDES, 78, membro da Academia Brasileira de Letras e da Comissão de Justiça e Paz, é presidente do "senior Board" do Conselho Internacional de Ciências Sociais da Unesco.

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