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A verdade sobre as nações indígenas
AZELENE KAINGÁNG e UBIRATAN WAPICHANA
Se alguém deve reclamar de ameaça à soberania somos nós, que, hoje, temos apenas 13% de um território que já foi 100% indígena
PODERÍAMOS aqui elencar uma
série de dados reais sobre a
Amazônia, sobre os povos indígenas e sobre os ganhos que têm a sociedade e o Estado brasileiro por reconhecer seu multiculturalismo. Vamos deixar isso para que Helio Jaguaribe o faça. Ou, então, continue publicando esses artigos burlescos e oportunistas ("Tendências/Debates", 19/
2) que só servem de pretexto para denegrir a imagem dos povos indígenas.
Primeiro, a Amazônia nunca esteve
abandonada, não pelos povos indígenas, que desde sempre estiveram e estão lá, guardando as fronteiras e garantindo a integridade territorial do
nosso país. Perguntamo-nos: Quem é
Helio Jaguaribe para falar de nacionalismo e de perda da Amazônia, para
nos acusar de formar nações com a
ajuda dos americanos para reivindicarmos nossa autonomia etc.?
Para informação de Jaguaribe e de
mais algum nacionalista de plantão
que busca culpados para a suposta
"perda da Amazônia", não estamos
construindo nações -nós somos nações indígenas!
Não com a ajuda dos americanos,
mas porque os cerca de 480 mil índios
brasileiríssimos são sobreviventes de
uma história de extermínio, de massacres, de chacinas e de toda sorte de
discriminação e preconceito de que
um povo pode ser vítima, mas que,
teimosamente, sobrevive num país
que, em pleno século 21, ainda abriga
pensamentos e conceitos tão retrógrados sobre o direito à diferença, explicitando a intolerância que sempre
caracterizou as relações de uma minoria deste país que detém o poder
econômico e político em detrimento
de uma maioria de diferentes.
Preconceito esse que nos faz sofrer
cotidianamente todos os tipos de violência, que nos faz diminuídos diante
de tanta impunidade, que faz nosso
sangue espesso em nossas veias finas
que já não suportam tanta revolta.
Somos apenas 480 mil graças a uma
errônea e equivocada política de extermínio adotada durante séculos e
que matou milhões em só 500 anos.
Somos nações, somos povos, sim. Falamos mais de 180 línguas diferentes.
É mais do que justo que o Estado que
nos submeteu aos horrores do extermínio assuma a responsabilidade de
proteger o que ainda resta de nossas
culturas, crenças e tradições e os parcos territórios dos quais usufruímos.
Não sabemos a que "americanos" se
refere Jaguaribe. Se for aos estadunidenses, são do país mais resistente ao
reconhecimento dos direitos humanos coletivos dos povos indígenas nos
fóruns internacionais, como a ONU e
a Organização dos Estados Americanos, que estão discutindo e formulando as declarações internacionais sobre os direitos dos povos indígenas.
Nesses fóruns, como líderes indígenas, participamos em condições de
eqüidade e igualdade com o Estado
brasileiro, representado por seu corpo diplomático, os conceitos de soberania, integridade territorial, direito à
livre determinação dos povos indígenas, direitos e soberania sobre suas
terras, territórios e recursos naturais,
entre outros. Discutimos tais direitos
fundamentais para garantir um futuro digno aos povos indígenas e estabelecer, entre o Estado brasileiro e os
povos indígenas, novas relações que
tenham como base o respeito mútuo.
Se alguém deve reclamar da ameaça
à soberania somos nós, que, hoje, temos apenas 13% de um território que
já foi 100% indígena e tivemos roubados e saqueados pelo menos 87% do
nosso Brasil indígena.
Somos os responsáveis por ainda
haver grandes riquezas nas terras que
nos empresta o Estado brasileiro porque respeitamos, preservamos e cuidamos delas. Jamais permitiremos
nenhum tipo de intervenção estrangeira nos territórios que ocupamos.
Esses territórios são as nossas casas
e a única garantia de vida que resta
aos nossos filhos, de quem, ao entardecer de cada dia, olhamos bem no
fundo dos olhos e damos a esperança
de ver no dia seguinte seus territórios
desocupados e livres de invasões, para
o exercício pleno e efetivo do seu direito humano à vida.
Um artigo como o de Helio Jaguaribe é uma afronta às nossas árduas lutas pela conquista, e não simples
"concessão", de cada palmo dos nossos territórios tradicionais. É uma
afronta aos nossos povos e à memória
dos nossos grandes líderes que foram
assassinados pelo Brasil afora em nome da liberdade de viver como povos
diferentes e dignos.
AZELENE KAINGÁNG, socióloga, e UBIRATAN WAPICHANA, advogado, são técnicos do Warã Instituto Indígena Brasileiro.
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