São Paulo, quarta-feira, 28 de abril de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

A cidadania traída

RUY ALTENFELDER

Em novembro, um mês após o primeiro turno das eleições municipais de 2004, o Brasil terá muito a comemorar, pois estarão transcorrendo 21 anos do comício realizado na praça Charles Müller, em São Paulo, em que desencadeou-se a campanha pelo voto direto à Presidência da República.
Cerca de 40 mil pessoas participaram. O gesto de cidadania cresceu, multiplicou-se e conquistou a nação. Tornou-se irreversível. Há 20 anos, cerca de 250 mil pessoas participaram, em 25 de janeiro de 1984, aniversário de São Paulo, de histórico comício na praça da Sé. Em 16 de abril, no Anhangabaú, também na capital paulista, já eram 1,7 milhão os brasileiros reivindicando em uníssono as "Diretas-Já". Quatrocentas mil pessoas em Belo Horizonte, 1 milhão no Rio de Janeiro e manifestações pacíficas de grande porte em todas as grandes cidades evidenciavam o renascer da cidadania. A mídia jornalística, a partir do engajamento da Folha, também aderiu à campanha.


A sociedade deve, mais do que nunca, manter-se mobilizada no sentido de reivindicar a reforma política


É importante lembrar essas datas e eventos, pois são significativos registros históricos de um processo de reconquista da democracia marcado pelo exercício do civismo. A reconstrução do Brasil democrático deu-se sobre bases institucionais sólidas, resistentes às crises político-econômicas intermitentes e a numerosos problemas persistentes no universo político e estatal. Nossa democracia, sem dúvida, permitiu-nos avançar muito. Há de ser, ainda, o alicerce e o vetor rumo ao desenvolvimento, ao resgate da dívida social e à distribuição mais justa da renda. Certamente também irá constituir-se no instrumento da sociedade para extirpar, ou pelo menos reduzir a traços estatísticos, os recorrentes casos e denúncias de corrupção.
Para avançar, porém, a democracia brasileira precisa -e muito- da reforma política. Mais uma vez, como há 21 anos, a cidadania será a grande indutora de um processo positivo de transformação. Nesse sentido, nem é preciso recorrer aos importantes dispositivos da Constituição de 1988 relativos ao direito de proposição de leis pela própria sociedade. Esta tem o legítimo poder -e o inalienável dever- de intervir na política, por meio da mobilização cívica das pessoas, instituições públicas e privadas, entidades de classe e organizações não-governamentais.
Exemplo disso foi o seminário promovido em 18 de fevereiro último, em São Paulo, pelo Instituto Roberto Simonsen, organismo de estudos avançados da Fiesp. Na oportunidade, diante do evidente clamor dos setores produtivos e organizações ali representados por mais de 400 pessoas, o presidente nacional do PT, José Genoino, assumiu compromisso público de que o partido apoiaria regime de urgência para a votação, ainda neste ano, do projeto de reforma política aprovado por comissão especial da Câmara dos Deputados. O compromisso foi referendado por unanimidade pelos demais líderes partidários presentes: senador Jorge Bornhausen (presidente nacional do PFL); deputado Aloysio Nunes Ferreira (vice-presidente nacional do PSDB); senador Roberto Freire (presidente nacional do PPS); deputado Michel Temer (presidente nacional do PMDB); e deputado federal Ronaldo Caiado (PFL-GO), relator do projeto na comissão especial.
O projeto aprovado pela Comissão Especial de Reforma Política da Câmara dos Deputados estabelece os seguintes pontos principais: financiamento público exclusivo para as campanhas eleitorais, com recursos da União, na proporção de R$ 7 por eleitor (considerando hoje 116 milhões de eleitores no país, o montante seria de R$ 812 milhões). As doações de pessoas físicas e jurídicas ficam proibidas; para eleições proporcionais, partidos terão de apresentar listas prévias, a serem aprovadas na convenção, e o voto será apenas na legenda; podem ser criadas federações partidárias, mas as coligações ficam proibidas nas eleições proporcionais; e é criada cláusula de barragem para o desempenho parlamentar dos partidos, que devem ter pelo menos 2% dos votos válidos na média de nove unidades da Federação. São importantes avanços.
Assim, foi profundamente lamentável assistir ao melancólico retrocesso do PT, ao apoiar, em 10 de março, a proposta de outras agremiações de retirada do regime de urgência para votar o projeto de reforma política. O compromisso do partido, assumido por seu presidente nacional em 18 de fevereiro, na sede da Fiesp, perante 400 cidadãos, não resistiu sequer um mês aos conhecidos vícios ainda arraigados ao exercício do poder. Por isso, a sociedade deve, mais do que nunca, manter-se mobilizada no sentido de reivindicar a reforma política. Afinal, a atitude do PT demonstra de forma cabal o quanto ela é necessária.

Ruy Martins Altenfelder Silva, 64, advogado, é presidente do Instituto Roberto Simonsen, organismo de estudos avançados da Fiesp. Foi secretário da Ciência, Tecnologia, Desenvolvimento Econômico e Turismo do Estado de São Paulo (2001-2002).


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