São Paulo, quinta-feira, 28 de abril de 2005

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Sem os erros do passado

NABIL BONDUKI

Durante a segunda metade do século 20, a população urbana brasileira foi a que mais cresceu no mundo, passando de 13 milhões para 135 milhões. O processo foi descontrolado, ao sabor dos negócios imobiliários e das necessidades dos mais pobres, gerando assentamentos precários e informais, depredação ambiental, congestionamento, espaços desorganizados e feios. A tentativa de planejar as cidades durante o regime militar gerou frustração. As carências se aguçaram e predominou um desenfreado processo de especulação urbana, apesar de a União ter patrocinado planos diretores por todo o país. Esse ciclo de planejamento teve escasso efeito, salvo no que se refere ao zoneamento, que se restringiu à cidade formal. Serviu, sobretudo, para a retórica dos prefeitos, que exibiam uma suposta preocupação com o futuro, pois o plano diretor foi mistificado pela mídia, como se tivesse um poder mágico.


O plano diretor deve ser um pacto dos diferentes segmentos em relação ao futuro da cidade


O planejamento urbano dos anos 70, contemporâneo do autoritarismo, estava baseado em princípios equivocados: centralizado, excluía a participação da sociedade; elaborado por consultores externos, era desarticulado dos planos de governo e não influenciava a gestão das políticas públicas; sem contar com instrumentos urbanísticos de regulação e manejo do solo, foi incapaz de induzir a ação dos agentes imobiliários; desprezando os técnicos locais, não criou uma estrutura institucional capaz de implementar suas propostas e alcançar seus objetivos.
Salvo exceções, não alcançou os resultados previstos e os planos viraram peças sem legitimidade, papéis pintados inúteis, grossos volumes de diagnósticos cheios de dados sem objetividade, textos repletos de propostas que nem as próprias administrações conheciam.
Na luta pela democratização, nos anos 80, o planejamento urbano estava desacreditado. Era combatido pelos neoliberais, contrários aos controles estatais, e pelos progressistas, que o identificavam com o autoritarismo, duvidavam de sua eficácia e preferiam ações diretas, como a ocupação de terras ociosas. Pressionados pelo movimento da reforma urbana para garantir a função social da propriedade, os constituintes de 1988, liderados pelo relator Mário Covas, ressuscitaram o plano diretor como o instrumento básico da política urbana municipal. A ele coube definir quando a propriedade urbana não cumpre a função social.
Em 2001, o Estatuto da Cidade regulamentou a Constituição, criando instrumentos urbanísticos mais efetivos que só podem ser utilizados se previstos no plano diretor, a ser elaborado, obrigatoriamente, até outubro de 2006, por cerca de 2.000 municípios.
A obrigação pode ser positiva, mas corre-se o risco de reproduzir velhos erros do passado, gerando uma indústria de produção de papéis sem legitimidade e utilidade para o município. Atenta a esse problema, a Secretaria Nacional de Programas Urbanos do Ministério das Cidades -uma das principais inovações do governo Lula- criou, em conjunto com o Conselho das Cidades, uma campanha nacional de capacitação e mobilização para qualificar os agentes envolvidos e garantir a participação da sociedade no planejamento urbano.
Para que os planos diretores deste segundo ciclo possam gerar melhores resultados, eles precisam ser efetivamente participativos, considerar a diversidade urbana do país, utilizar de forma criativa e apropriada os novos instrumentos urbanísticos e estar articulados com a gestão municipal e com os instrumentos de planejamento orçamentário, como o PPA -Plano Plurianual de Desenvolvimento- e os orçamentos-programa. A participação da sociedade é a pedra angular, pois o plano diretor deve ser um pacto dos diferentes segmentos em relação ao futuro da cidade. Assim, as diversas forças políticas irão se comprometer com os objetivos estabelecidos no plano, garantindo sua implementação.
A aplicação dos instrumentos urbanísticos previstos pelo Estatuto da Cidade para regular a ação dos agentes privados é indispensável, mas ela precisa levar em conta as características do município e os objetivos traçados, evitando soluções fáceis e prontas e a reprodução de modelos padronizados, pois muitas vezes esses instrumentos não são os melhores para a realidade de uma cidade.
A articulação entre o plano diretor e as políticas setoriais é indispensável para ele se tornar um instrumento efetivo de gestão, que oriente os Orçamentos anuais e os programas e projetos a serem desenvolvidos. A coincidência entre o início das novas administrações, quando se formula os PPAs, com prazo de quatro anos, e a realização dos planos diretores, que têm horizontes mais largos (de dez a 15 anos), é uma oportunidade para articular esses instrumentos. Só poderemos alcançar os objetivos do planejamento urbano se a cada ano e a cada administração as intervenções previstas no plano forem efetivadas.
As cidades têm uma grande oportunidade de planejar seu futuro, reduzir as desigualdades urbanas, promover um adequado uso do solo, evitar o desastre ambiental e criar mecanismos que estimulem a produção habitacional. As prefeituras não podem perder essa oportunidade, repetindo os erros do passado.

Nabil Bonduki, 50, arquiteto e urbanista, é professor de urbanismo na USP e consultor em políticas urbanas e habitacionais. Foi vereador, pelo PT, e relator do Plano Diretor na Câmara Municipal de São Paulo (2001-2004).
@ - nabil.bonduki@uol.com.br



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