São Paulo, terça-feira, 28 de maio de 2002

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ROBERTO MANGABEIRA UNGER

Morte e legado da terceira via

A "terceira via" é um dos rótulos que descrevem a suposta modernização da social-democracia no Atlântico norte. Reconciliaria a flexibilidade econômica dos americanos com a proteção social dos europeus. Os partidos e os governos que a abraçaram vêm sendo derrotados em toda a parte. Por quê? Que legado deixarão? E o que tem isso a ver com o Brasil? Em encontro entre líderes e administradores da social-democracia européia, deparo-me com experiência rica em ensinamentos para nós.
A terceira via não foi avanço. Foi retirada - motivada por imperativos de eficiência e de justiça. De eficiência, porque era preciso reformular os direitos sociais de maneira que facilitasse a renovação econômica, estimulasse a auto-ajuda individual e limitasse o crescimento do gasto público. De justiça, para impedir que esses direitos beneficiassem alguns -os trabalhadores relativamente privilegiados- à custa de excluir outros.
O resultado, porém, foi menos a síntese da flexibilidade econômica com a proteção social do que a generalização da insegurança social e econômica. Relativamente seguras ficaram apenas as elites internacionalizadas. Contra a insegurança generalizada, rebelam-se agora esses civilizados prósperos, desiludidos e temerosos que são os europeus de hoje.
Para fazer diferente, não basta flexibilizar os direitos sociais, como quiseram os governos da terceira via. É preciso atenuar as divisões entre setores adiantados e atrasados da economia. Capacitar todos os cidadãos e obrigá-los a combinar responsabilidades produtivas com responsabilidades sociais: sustentar-se e cuidar dos outros.
Só acontecerá sob a pressão de novas instituições políticas que engajem as pessoas, sem a provocação de crises ou de guerras, no encaminhamento coletivo dos problemas coletivos. Para chegar a isso, os social-democratas teriam de retomar a tarefa que abandonaram no início do século 20, quando trocaram o esforço de reorganizar a economia e a política pelo compromisso de regular o mercado e de diminuir, por via compensatória, as desigualdades.
Ao soçobrar, porém, a terceira via deixa herança que precisa ser salva do malogro de seu projeto maior. Implícita em suas realizações mais bem-sucedidas está uma prática revolucionária de administração pública. Prática definida por três traços. O Estado delega a provedores privados competitivos e fiscalizados a prestação dos serviços sociais corriqueiros. O Estado organiza a participação das comunidades organizadas na formulação e na execução das políticas públicas: representações da sociedade civil passam a atuar ora em parceria com os provedores privados, ora como vigias deles. E o Estado concentra sua atuação direta em iniciativas que ainda não se deixam padronizar: soluções desconhecidas para problemas que pareciam insolúveis. Com isso, assume o Estado a lógica da inovação permanente e do experimentalismo prático, vinda dos setores mais avançados da economia e do conhecimento. Passa a operar na fronteira do novo.
Não precisávamos ter assistido ao desmanche da terceira via na Europa para saber que não humanizaremos o Brasil sem reorganizá-lo. Não executaremos, porém, a obra reorganizadora sem avançar naquilo que os militantes da terceira via vislumbraram: a possibilidade de construir um Estado inovador e provocador de inovações. Não é luxo de país rico. É, para nós, exigência de soerguimento nacional.


Roberto Mangabeira Unger escreve às terças-feiras nesta coluna.

www.idj.org.br



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