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ROBERTO MANGABEIRA UNGER
Morte e legado
da terceira via
A "terceira via" é um dos rótulos que descrevem a suposta
modernização da social-democracia
no Atlântico norte. Reconciliaria a flexibilidade econômica dos americanos
com a proteção social dos europeus.
Os partidos e os governos que a abraçaram vêm sendo derrotados em toda
a parte. Por quê? Que legado deixarão?
E o que tem isso a ver com o Brasil?
Em encontro entre líderes e administradores da social-democracia européia, deparo-me com experiência rica
em ensinamentos para nós.
A terceira via não foi avanço. Foi retirada - motivada por imperativos
de eficiência e de justiça. De eficiência,
porque era preciso reformular os direitos sociais de maneira que facilitasse a renovação econômica, estimulasse a auto-ajuda individual e limitasse o
crescimento do gasto público. De justiça, para impedir que esses direitos
beneficiassem alguns -os trabalhadores relativamente privilegiados- à
custa de excluir outros.
O resultado, porém, foi menos a síntese da flexibilidade econômica com a
proteção social do que a generalização
da insegurança social e econômica.
Relativamente seguras ficaram apenas
as elites internacionalizadas. Contra a
insegurança generalizada, rebelam-se
agora esses civilizados prósperos, desiludidos e temerosos que são os europeus de hoje.
Para fazer diferente, não basta flexibilizar os direitos sociais, como quiseram os governos da terceira via. É preciso atenuar as divisões entre setores
adiantados e atrasados da economia.
Capacitar todos os cidadãos e obrigá-los a combinar responsabilidades produtivas com responsabilidades sociais: sustentar-se e cuidar dos outros.
Só acontecerá sob a pressão de novas instituições políticas que engajem
as pessoas, sem a provocação de crises
ou de guerras, no encaminhamento
coletivo dos problemas coletivos. Para
chegar a isso, os social-democratas teriam de retomar a tarefa que abandonaram no início do século 20, quando
trocaram o esforço de reorganizar a
economia e a política pelo compromisso de regular o mercado e de diminuir, por via compensatória, as desigualdades.
Ao soçobrar, porém, a terceira via
deixa herança que precisa ser salva do
malogro de seu projeto maior. Implícita em suas realizações mais bem-sucedidas está uma prática revolucionária de administração pública. Prática
definida por três traços. O Estado delega a provedores privados competitivos e fiscalizados a prestação dos serviços sociais corriqueiros. O Estado
organiza a participação das comunidades organizadas na formulação e na
execução das políticas públicas: representações da sociedade civil passam a
atuar ora em parceria com os provedores privados, ora como vigias deles.
E o Estado concentra sua atuação direta em iniciativas que ainda não se
deixam padronizar: soluções desconhecidas para problemas que pareciam insolúveis. Com isso, assume o
Estado a lógica da inovação permanente e do experimentalismo prático,
vinda dos setores mais avançados da
economia e do conhecimento. Passa a
operar na fronteira do novo.
Não precisávamos ter assistido ao
desmanche da terceira via na Europa
para saber que não humanizaremos o
Brasil sem reorganizá-lo. Não executaremos, porém, a obra reorganizadora sem avançar naquilo que os militantes da terceira via vislumbraram: a
possibilidade de construir um Estado
inovador e provocador de inovações.
Não é luxo de país rico. É, para nós,
exigência de soerguimento nacional.
Roberto Mangabeira Unger escreve às terças-feiras nesta coluna.
www.idj.org.br
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