São Paulo, terça-feira, 28 de maio de 2002

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Transplante de doador vivo

SILVANO RAIA e SÉRGIO MIES

A possibilidade de usar enxertos de doador vivo ampliou os horizontes inéditos oferecidos pelo transplante a pacientes portadores de doenças do fígado. Isso porque não tem sido possível obter enxertos de cadáver em número suficiente para atender a demanda, fazendo com que a espera para o procedimento seja muito demorada.
Em alguns centros, a mortalidade na lista de inscritos chega a até 40%, principalmente na de receptores infantis, para os quais o número de enxertos de cadáver disponível é ainda menor.
Para contornar essa dificuldade, descrevemos uma técnica para uso pediátrico que passou a se denominar transplante de fígado intervivos, realizada pela primeira vez no mundo aqui em São Paulo, em 1988. Consiste na retirada do segmento lateral esquerdo (cerca a 20% a 25% do órgão) de um doador voluntário adulto e no seu implante num receptor infantil. O processo de regeneração do órgão repõe no doador a massa hepática retirada com o enxerto, que cresce no receptor até atingir o tamanho condizente com seu peso corpóreo.
Apesar do inevitável risco para o doador, o método vem sendo cada vez mais usado. No ano 2000 representou 50% de todos os transplantes pediátricos de fígado referidos na literatura, permitindo nítida redução da mortalidade na lista de espera.
Na década de 90, alguns autores, animados pelos resultados obtidos em crianças, adotaram a nova técnica também em adultos, usando um enxerto maior, com o lobo direito do doador (cerca de 50% a 60% do órgão). Também para esses pacientes observou-se uma aceitação surpreendentemente rápida, tendo sido operados mais de 4.000 casos em 30 centros nos EUA, em 15 centros na Ásia e cinco na Europa.
Na Unidade de Fígado, a demora na lista de espera tem causado uma situação dramática. Em 1999, morreram, por falta de enxerto, 81 dos 243 inscritos, número que se elevou para 131 no ano 2000. Diante desses fatos, em setembro de 2001 iniciamos o uso da técnica intervivos também em adultos. Desde então realizamos 39 transplantes desse tipo, 14 dos quais já no Hospital Israelita Albert Einstein. Foram operados por meio da recente parceria com a Unidade de Fígado para atendimento de pacientes do SUS, iniciativa pioneira comentada em artigo nesta Folha ("Tendências/ Debates", pág. A3, 27/12/01).


Em alguns centros, a mortalidade na lista de inscritos chega a até 40%, principalmente na de receptores infantis


Não houve mortalidade entre os doadores, nenhum recebeu transfusão de sangue e seu tempo médio de permanência no hospital foi de 3,8 dias. Os resultados para o receptor foram semelhantes aos com enxerto de cadáver.
Analisemos agora os aspectos éticos da questão. De início, deve-se salientar que somente centros com grande experiência em ressecções hepáticas e em transplantes convencionais podem realizar a modalidade intervivos. Apenas nessas circunstâncias é garantida ao doador a retirada do enxerto com um risco eticamente aceitável. Mais especificamente, o procedimento deve ser analisado com vistas aos princípios básicos da ética médica.
A modalidade baseada na doação voluntária do lobo direito é útil? Sim, porque representa a única esperança para os candidatos que não podem esperar o tempo previsto para o transplante com órgão de cadáver. É justa? Sim, porque aumenta a chance dos receptores da lista de espera, evitando a inscrição de mais candidatos. No que diz respeito ao princípio "primo non nocere", que proíbe ao médico causar dano a qualquer um dos seus pacientes, a análise deve considerar também a autonomia. Garante ao doador o direito de correr um risco conhecido para salvar a vida de outro ser humano a ele emocionalmente relacionado.
Este binômio leva ao conceito do "consentimento legítimo", baseado numa decisão isenta de pressões de qualquer tipo, sejam elas emocionais, familiares ou outras. É inevitável que, num cenário no qual a vida de um ente querido depende de uma decisão desse tipo, ocorram influências que podem limitar a liberdade de decisão do doador. Cabe à equipe responsável obedecer a uma sistemática capaz de garantir ao máximo seu livre arbítrio. Na Unidade de Fígado, havendo indicação, o receptor e seus familiares são informados da existência da alternativa intervivos.
Surgindo um doador em potencial, seu estudo é realizado por outra equipe médica, sempre na ausência do receptor e de seus familiares. Tem início com a descrição minuciosa dos riscos inerentes à retirada do enxerto. A seguir, obedece a um ritual dividido em etapas, cada uma incluindo exames capazes de esclarecer, progressivamente, se o potencial doador pode efetivamente ser aproveitado. Após cada uma das três etapas, é solicitado que o doador assine um consentimento formal.
Antes de cada assinatura, mesmo se os exames demonstrarem que a cirurgia é possível, o doador é informado de que uma eventual desistência será apresentada ao receptor e seus familiares como decorrente de incompatibilidades anatômicas ou de outro tipo. Se, após esses procedimentos, o doador confirmar sua decisão inicial, a anuência é interpretada como um "consentimento legítimo".
Ao conduzir esse processo, a equipe que indica e realiza o transplante intervivos dá um bom exemplo do que se espera do médico moderno. Ele representa a interface entre a rápida evolução da medicina atual e o interesse dos pacientes. Para bem exercer essa função, deverá desenvolver e usar cada vez mais discernimento e princípios éticos, que tendem a se adaptar a esse mesmo progresso até há pouco nem imaginado.


Silvano Mário Attilio Raia, 71, e Sérgio Mies, 58, são cirurgiões responsáveis pela Unidade de Fígado.



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