São Paulo, terça-feira, 28 de maio de 2002 |
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TENDÊNCIAS/DEBATES Transplante de doador vivo
SILVANO RAIA e SÉRGIO MIES
Não houve mortalidade entre os doadores, nenhum recebeu transfusão de sangue e seu tempo médio de permanência no hospital foi de 3,8 dias. Os resultados para o receptor foram semelhantes aos com enxerto de cadáver. Analisemos agora os aspectos éticos da questão. De início, deve-se salientar que somente centros com grande experiência em ressecções hepáticas e em transplantes convencionais podem realizar a modalidade intervivos. Apenas nessas circunstâncias é garantida ao doador a retirada do enxerto com um risco eticamente aceitável. Mais especificamente, o procedimento deve ser analisado com vistas aos princípios básicos da ética médica. A modalidade baseada na doação voluntária do lobo direito é útil? Sim, porque representa a única esperança para os candidatos que não podem esperar o tempo previsto para o transplante com órgão de cadáver. É justa? Sim, porque aumenta a chance dos receptores da lista de espera, evitando a inscrição de mais candidatos. No que diz respeito ao princípio "primo non nocere", que proíbe ao médico causar dano a qualquer um dos seus pacientes, a análise deve considerar também a autonomia. Garante ao doador o direito de correr um risco conhecido para salvar a vida de outro ser humano a ele emocionalmente relacionado. Este binômio leva ao conceito do "consentimento legítimo", baseado numa decisão isenta de pressões de qualquer tipo, sejam elas emocionais, familiares ou outras. É inevitável que, num cenário no qual a vida de um ente querido depende de uma decisão desse tipo, ocorram influências que podem limitar a liberdade de decisão do doador. Cabe à equipe responsável obedecer a uma sistemática capaz de garantir ao máximo seu livre arbítrio. Na Unidade de Fígado, havendo indicação, o receptor e seus familiares são informados da existência da alternativa intervivos. Surgindo um doador em potencial, seu estudo é realizado por outra equipe médica, sempre na ausência do receptor e de seus familiares. Tem início com a descrição minuciosa dos riscos inerentes à retirada do enxerto. A seguir, obedece a um ritual dividido em etapas, cada uma incluindo exames capazes de esclarecer, progressivamente, se o potencial doador pode efetivamente ser aproveitado. Após cada uma das três etapas, é solicitado que o doador assine um consentimento formal. Antes de cada assinatura, mesmo se os exames demonstrarem que a cirurgia é possível, o doador é informado de que uma eventual desistência será apresentada ao receptor e seus familiares como decorrente de incompatibilidades anatômicas ou de outro tipo. Se, após esses procedimentos, o doador confirmar sua decisão inicial, a anuência é interpretada como um "consentimento legítimo". Ao conduzir esse processo, a equipe que indica e realiza o transplante intervivos dá um bom exemplo do que se espera do médico moderno. Ele representa a interface entre a rápida evolução da medicina atual e o interesse dos pacientes. Para bem exercer essa função, deverá desenvolver e usar cada vez mais discernimento e princípios éticos, que tendem a se adaptar a esse mesmo progresso até há pouco nem imaginado. Silvano Mário Attilio Raia, 71, e Sérgio Mies, 58, são cirurgiões responsáveis pela Unidade de Fígado. Texto Anterior: Frases Próximo Texto: Liszt Vieira: Uma outra globalização é possível? Índice |
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