São Paulo, terça-feira, 28 de maio de 2002

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Uma outra globalização é possível?

LISZT VIEIRA

Os atentados de 11 de setembro nos EUA provocaram tamanho impacto que muitos passaram a considerar essa data o início do século 21. Mas nem todos perceberam que os impactos foram diferenciados. Os governos, em sua grande maioria, se alinharam ao estado de guerra anunciado pelos EUA para efeito de retaliação militar e promoção de seus interesses estratégicos na Ásia Central. Quanto aos mercados, recuperaram pouco depois sua "normalidade" e continuaram impondo sua lógica estritamente financeira de tratar o mundo como mercadoria.
Já a sociedade civil foi atingida de forma diferente. O movimento de construção da cidadania global mediante a resistência e o enfrentamento da globalização econômica praticamente paralisou suas atividades após 11 de setembro.
As redes mundiais da sociedade civil, que se fortaleceram extraordinariamente na última década, começaram a adquirir maior visibilidade com as manifestações de protesto iniciadas em dezembro de 1999, por ocasião da reunião da OMC em Seattle, nos EUA. Daí em diante, todas as reuniões dos países industrializados enfrentaram os protestos dos excluídos da globalização autoritária, que promove a integração dos mercados desintegrando as relações políticas e sociais nos Estados nacionais.
Nos últimos 20 anos, uma crescente concentração de riqueza em escala mundial aprofundou a distância entre países ricos e pobres e levou ao aumento da pobreza e da miséria no mundo, à generalização de conflitos armados e à destruição e à apropriação de recursos naturais em benefício de empresas transnacionais. O processo de globalização em curso vem enfraquecendo o Estado nacional. Fenômenos e processos econômicos, sociais, culturais, ambientais -entre outros- tornaram-se imediatamente globais, ignorando os atributos básicos do Estado-nação: território, soberania e autonomia.
Mas o aumento do desemprego, a exclusão social, a degradação ambiental, o desrespeito à diversidade cultural não são mais aceitos passivamente pelos cidadãos do mundo, hoje conectados em redes e congregados em associações atuantes no movimento mundial.
A luta permanente desses atores não-estatais pela democracia, proteção ambiental e diversidade cultural levou-os a formar redes mundiais de resistência à globalização econômica, constituindo, nesse processo, importante referência da luta pela democratização da política mundial. E também uma saída para o impasse entre a esquerda tradicional, que olha a globalização apenas como eufemismo para o imperialismo norte-americano, e uma nova direita, que abandonou a retórica do interesse nacional para se integrar de forma subordinada ao mercado mundial.
Para enfrentar a globalização, a sociedade civil também se globaliza. Trata-se aqui de uma globalização democrática, a partir de baixo, mostrando ao mundo que uma outra globalização é possível, baseada nos direitos humanos, na democracia, na paz, na solidariedade. Este é o sentido das propostas encaminhadas pelas ONGs na ONU e outros organismos, dos protestos nas ruas de Seattle, Washington, Montreal, Genebra, Praga, Nice, Gênova, passando pelo Fórum Social Mundial, em Porto Alegre. Nesses eventos, a sociedade civil apresentou propostas alternativas à (des) ordem social internacional imposta pelos países dominantes.


Para enfrentar a globalização, a sociedade civil também se globaliza. Trata-se aqui de uma globalização democrática


Todo esse processo foi bruscamente interrompido em 11 de setembro. O mundo ficou atônito com os atentados e com a reação norte-americana de declarar o estado de guerra e restringir -até mesmo suprimir- direitos civis e liberdades democráticas dentro dos EUA. Reapareceu a política direitista do "big stick" e do macartismo -e com ela a visão estadocêntrica que nega o espaço público democrático.
O movimento mundial de cidadãos foi obrigado a recuar. Somente agora retoma fôlego e volta a denunciar a falência das instituições financeiras internacionais, como o FMI, o Banco Mundial e a OMC. A Argentina, que aplicou à risca a cartilha neoliberal, é o mais recente e trágico exemplo da asfixia econômica provocada pela política do FMI.
Enquanto os países do sul elegeram a ONU como o parlamento político mundial, os países industrializados preferem suas instituições multilaterais.
A política unilateral isolacionista e arrogante do governo Bush é simultaneamente causa e efeito do reforço do complexo industrial-militar, que parecia relegado a segundo plano desde o fim da Guerra Fria. A desarticulação do Mercosul e a tentativa de imposição da Alca constitui vigoroso passo na política de balcanização da América Latina e subordinação de seus países aos interesses dos EUA.
Caberá agora às organizações e redes dar continuidade aos debates com vistas à construção de uma agenda contemplando propostas concretas de uma globalização democrática, que coloque os direitos e necessidades dos povos acima dos interesses do mercado.


Liszt Benjamin Vieira, doutor em sociologia, professor da PUC-RJ, é secretário do Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável do Estado do Rio de Janeiro.



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