São Paulo, quarta-feira, 28 de julho de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

A igreja e a homofobia

JOÃO SILVÉRIO TREVISAN

Desde a década de 1980, a homossexualidade é um prato cheio na ressaca da política conservadora imposta por Margaret Thatcher, João Paulo 2º e, agora, George W. Bush.
Thatcher ressuscitou antigas leis britânicas contra práticas homossexuais. Em sua campanha pela reeleição, Bush tem levantado a bandeira contra a legalização de uniões homoafetivas, tentando até mudar a Constituição norte-americana. João Paulo 2º é um caso ainda mais complicado. Seu longo pontificado se caracterizou pelo desmonte das conquistas do Concílio Vaticano 2º, que buscavam afinar o diálogo da igreja com o mundo moderno. Numa cruzada de fundamentalismo político-religioso, destituiu bispos progressistas, puniu teólogos mais corajosos (Leonardo Boff, entre outros) e endureceu contra costumes "anticristãos".


A igreja não se dá conta sequer do sofrimento psíquico que impõe a milhares de homossexuais católicos


Em vários países (inclusive no Brasil), a Inquisição católica perseguiu, humilhou e condenou homossexuais (então chamados de sodomitas), por seus "desvios" da moral cristã. O Santo Ofício da Inquisição mudou de nome: Congregação para a Doutrina da Fé. Mas o anátema à homossexuais continua. Dentre a enxurrada de recentes condenações do Vaticano, há o documento "Sobre os projetos de reconhecimento legal das uniões entre pessoas homossexuais", publicado em junho de 2003, pela citada congregação. Aí se afirma que "as relações homossexuais estão em contraste com a lei moral natural", pois "fecham o ato sexual ao dom da vida". Por seu "caráter imoral", a união entre pessoas do mesmo sexo é considerada "nociva a um reto progresso da sociedade humana".
Invertendo os pólos da acusação de discriminatório, o documento considera as uniões homossexuais "contrárias à justiça", portanto não aceitá-las é uma exigência justa.
No mesmo período saiu o "Lexicon" do Conselho Pontifício para a Família, um calhamaço com a posição eclesiástica sobre conceitos morais polêmicos. O verbete "homossexualidade" ostenta um extraordinário compêndio de velhos preconceitos, num raciocínio capcioso que chega à arrogância. Contrapondo-se à Organização Mundial da Saúde, define a prática homossexual como "um conflito psíquico não resolvido", que "favorece um desvio", o que a torna "contrária ao vínculo social e aos fundamentos antropológicos". Assim, desautoriza casais homoafetivos a constituírem família, sob pretexto de se tratar de "atormentados" que sofrem de "impotência ansiogênica".
Numa inversão perversa que torna a sociedade vítima de militantes homossexuais, o documento acusa-os de conspirar para ganhar poder até na ONU e no Parlamento Europeu. E demoniza homossexuais como vilões que minam a moral familiar.
Há cinismo, ao esconder que a própria igreja partilha da responsabilidade de criar atormentados/as. Bastaria um mínimo de sensatez para compreender como o seu poder espiritual afeta gravemente a vida de milhões de pessoas, por minar a auto-estima e estimular o ódio social aos homossexuais. Ao contrário de sua propalada vocação pastoral, a igreja não se dá conta sequer do sofrimento psíquico que impõe a milhares de homossexuais católicos/as e à numerosa parcela homossexual do clero. Prefere uma prática inquisitorial, através de triagem psicológica que, desde a década de 1980, recusa candidatos homossexuais nos seminários para padres. Esse dado me foi confirmado por um seminarista gay, que passou no teste porque não apresentava trejeitos afeminados.
Tenho vários amigos, conhecidos e leitores que são padres homossexuais. Alguns tentam driblar a instituição. Outros vivem nas cavernas, aterrorizados pela possibilidade de serem descobertos. Não por acaso, as estatísticas sobre padres HIV positivos e mortos por Aids constituem uma caixa-preta resguardada pela hierarquia católica no Brasil.
Em todo o mundo, começam a pipocar reações a essa instituição enrijecida no trato com o mundo moderno. Em Madri, 1.200 homossexuais entregaram recentemente, ao arcebispado local, declarações de abandono da fé católica. Em São Paulo, a Defensoria Homossexual iniciou uma campanha de ações judiciais em massa contra o cardeal emérito do Rio de Janeiro, dom Eugenio Sales, acusando-o de recorrentes agressões homofóbicas na mídia -por exemplo, ao brandir a Bíblia para dizer que homossexuais devem morrer. E a arquidiocese americana de Portland acaba de pedir falência, por causa das inúmeras indenizações judiciais solicitadas por homens que, na infância, sofreram abuso sexual de padres.
Nem o título de vigário de Cristo autoriza o papa a intervir na vida pessoal dos indivíduos. Afinal, o mundo moderno aboliu faz tempo as teocracias. Enquanto se aferrar a leis cegas, a instituição católica se mostrará incapaz de compreender a mais extraordinária experiência humana, que é o amor, em suas diversificadas expressões. Se compreendesse, deveria pedir perdão aos homossexuais e demais pessoas que, por séculos, foram punidas fisicamente ou ainda hoje sofrem com a dor da culpa só porque suas formas de amor extravasam diretrizes doutrinárias da mais influente instituição religiosa do mundo.
Assim como a alma humana é maior do que os compêndios eclesiásticos, a justiça está acima dos fariseus e doutores da lei, que usam o nome de Deus para ganhar poder e, com isso, atropelam a mensagem evangélica do amor.

João Silvério Trevisan, 60, escritor e roteirista, é autor de "Em Nome do Desejo", "Devassos no Paraíso" e "Ana em Veneza" (todos publicados pela ed. Record).


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