São Paulo, segunda-feira, 28 de agosto de 2006

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Demorou a pecha populista

CANDIDO MENDES


A inevitabilidade da vitória de Lula já permite os primeiros cenários para após a reeleição


A INEVITABILIDADE da vitória de Lula já permite os primeiros cenários para após a reeleição: o presidente ganhando sem o partido, sem os quadros que o levaram ao poder e apoiado pela população mais distante do dito "país bem".
Esse futuro é visto pelos opositores como pobre e regressivo. Estaríamos apenas enterrando num velho populismo o que foi a esperança fundadora do Partido dos Trabalhadores.
Só que -e justamente ao contrário do que pensa a elite- a prática da mudança é suja e decepcionante como a história. A esperança não precisa dos idealismos ingênuos ou febris e enjeita tanto a diatribe moralista como a detergência do purismo doutrinário.
A realpolitik da mudança -esta que hoje experimenta o Brasil- não é a do luxo do confronto, suas trompas e suas retóricas.
E o Lula que os radicais condenam pela privatização da Previdência é também o da mantença do Estado na infra-estrutura do país, no campo crucial das hidroelétricas, no exemplo e no arranco que mal começa das PPPs (Parcerias Público-Privadas), que são todo o contrário do neoliberalismo. Na prática real da mudança, essa dinâmica da empresa brasileira repõe no seu lugar e na sua iniciativa o concurso do poder público, que modulou, de sempre, o desenvolvimento brasileiro.
A tônica do primeiro mandato é a de uma efetiva redistribuição da renda nacional, de par com o apoio ao governo dos setores sociais que dela se beneficiaram.
Lula reeleito continua a opção de base, e disso quem entende é o país de fora, naqueles 33% da população em que a marginalidade saiu do seu imobilismo, tocado de vez pela mudança.
O que a carteira de trabalho não fez, garantiram o Bolsa-Família, o minicrédito, o incentivo rural e a expansão do salário informal no âmbito das famílias como crescentes unidades da produção.
A mudança transforma pedestremente o dia-a-dia. E não é assistencialismo crasso essa política do acesso à saúde e à educação, com a bolsa que acresce aos vencimentos mínimos e assenta a confiança de base que levou Lula ao poder e assegura a sua continuação. O petista desatou um largo processo, no qual pesam novos sujeitos de decisão e influência política. A marginalidade cobra, tal como o Nordeste, eleitores básicos do novo mandato. Mas em prazos mais longos, com a paciência de quem aguardou décadas. E o passo adiante não vai ao abracadabra reformista.
Não há muitas fórmulas, mas um só capital de trunfos nascidos do próprio percurso tão fora das expectativas do "país bem". Ganhou este, de saída, já que a realpolitik exige a convivência com os antagonismos de modelo e que se queira, de fato, vencer a prazo a contradição entre quem tem muito e quem nada tem no país.
O processo é longo e não comporta o frenesi utópico radical. Terá até comparsas equívocos, pagos ou oportunistas. Mas aposta nesse capital pedestre de mobilização e confiança no avanço nada dramático, como pede a esperança sem retórica. Essa que não se assenta nos populismos nem nas vozes messiânicas.
Lula consolidou o saldo único de uma liderança genuinamente sindical. Não é a do carisma ou a do condutor fora do grupo, mas dessa tessitura coletiva e suada que continua nos erros de prosódia, na sintaxe truncada ou no mal à vontade em citar as matemáticas do êxito.
Não contará Lula ao início do segundo mandato com a rendição da opinião pública, como em 2002, nem se desfarão os desgostos e os hematomas das classes médias a só enxergar no "Lulinha, paz e amor" um governo decente.
Um governo da opção começará a pagar os seus frutos por sobre a panacéia da estabilização. Mas não encontrará como beneficiário passivo um Brasil populista, mas consciência política que sabe quem reelege e esperou para a difícil e machucada diferença para além, simplesmente, do "país decente".

CANDIDO MENDES , 78, membro da Academia Brasileira de Letras e da Comissão de Justiça e Paz, é presidente do "senior Board" do Conselho Internacional de Ciências Sociais da Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura).


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