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Dostoiévski e o mal
ARIANO SUASSUNA
Como acontece também com o feio,
o mal é uma das faces da desordem do
mundo e da vida. Ambos são privações, são chagas do ser. Isto não importa em minimizar a importância, a
poderosa presença do mal e do feio no
universo da realidade e, consequentemente, no da arte. As pessoas que julgam antiquada qualquer referência à
moral, normalmente se envergonham
de usar os critérios de bem e mal em
qualquer julgamento, no estético em
particular. Na minha época de juventude passei, como todo mundo, por
uma fase em que julguei ter me desvencilhado de Deus e dos conceitos de
bem e mal. Até o dia em que, lendo
Dostoiévski, encontrei uma frase de
Ivan Karamazov, que dizia: "Se Deus
não existe, tudo é permitido". Descobri, na mesma hora, que as normas
morais ou tinham um fundamento divino, absoluto, ou não tinham qualquer validade, porque ficariam dependendo das opiniões e paixões de cada
um.
Entretanto, como tudo o que o personagem dostoievskiano dizia, a frase
de Ivan não continha nem uma afirmação nem uma negação: lançava somente uma dúvida; uma ambígua dúvida da qual Sartre viria a fugir, afirmando: "Deus não existe, e, portanto,
tudo é permitido". Eu, porém, apesar
da minha extrema juventude, tirei da
frase de Ivan a consequência contrária: "Vejo que nem tudo é permitido;
então, Deus existe". E, daí por diante,
procurei ajustar minha vida e minha
arte pela convicção a que chegara.
É por isso que sempre considerei irresponsáveis e mal formulados tanto
o princípio amoral estabelecido por
Sartre quanto o lema leviano e tolo
que os tropicalistas herdaram do movimento parisiense de 68: "É proibido
proibir". E certa vez, em debate realizado no Recife, indaguei, de um seguidor do lema, em que se fundamentava
tal "proibição de proibir". Ele respondeu que era "numa ética libertária do
prazer".
Aí, coloquei, para ele, a seguinte hipótese: "Digamos, então, que um sujeito saia por aí atirando em travestis e
homossexuais, como tem acontecido.
Se ele alegar que age assim por sentir
prazer na prática de tal crime, deve lhe
ser permitido continuar, para não ferir a norma de que é proibido proibir?
Ou é melhor chegar à conclusão de
que, pelo contrário, existem casos em
que é permitido, e até obrigatório,
proibir?"
E, como não obtive resposta satisfatória, cheguei mais uma vez à conclusão de que Hegel tinha razão ao considerar a arte, a religião e a filosofia como etapas no caminho do ser humano
em direção a Deus, fundamento de
qualquer norma moral que, por não
depender do arbítrio individual, não
se veja obrigada a considerar legítima
até a realidade monstruosa do crime.
Ariano Suassuna escreve às terças-feiras nesta coluna.
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