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São Paulo, terça-feira, 28 de outubro de 2003

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ROBERTO MANGABEIRA UNGER

Autocondenação

Nesta hora em que o esvaziamento abrupto das esperanças suscitadas pela eleição de 2002 agrava os efeitos de duas décadas de estagnação desmoralizadora, é preciso perguntar com renovada urgência: o que será do Brasil? Uma idéia domina hoje a discussão a respeito de nosso futuro. Está nas entrelinhas da maioria das declarações até mesmo dos que se opõem à política oficial. Plausível e sóbria, veste as roupagens do cosmopolitismo desiludido. Essa idéia, porém, é falsa. Temos de repudiá-la para soerguer o país.
A idéia a repudiar se apresenta em duas partes. Na primeira parte, ela protesta que nossos governos deveriam defender com mais afinco os interesses do social, do trabalho e da produção: por exemplo, preservando os recursos da educação e da saúde e forçando baixa mais rápida dos juros. Na segunda parte, porém, ela admite ser estreita a margem de manobra de qualquer governo nacional nas circunstâncias atuais do país e do mundo. Nossa falta de dólares e nosso excesso de dívidas apenas reforçariam os constrangimentos impostos pelo triunfo da globalização e pelo malogro das ideologias. Da junção da primeira parte dessa idéia com a segunda resulta a lição constantemente repetida: temos de nos render, mas não precisamos exagerar.
Nada disso. O mundo assiste a grande transformação, vinda tanto de países mais ricos como os Estados Unidos como de países mais pobres como a China. As nações e os setores que maior êxito vêm conseguindo são aqueles que ingressam seletivamente num rumo que não é nem liberal nem estatista. É experimentalista. O experimentalismo está sediado nas melhores escolas e nas melhores empresas, mas de lá se pode difundir para toda a sociedade e toda a cultura. Seu traço marcante é privilegiar a inovação permanente. Empresas começam a se parecer com escolas. Escolas começam a se parecer com equipes de pesquisadores atuando nas fronteiras do conhecimento. E administrações públicas começam a se parecer com inventores, experimentando soluções variadas para descobrir quais funcionam melhor. Que movimento pode haver mais radical e fecundo do que esse -os vivos tentando derrubar a ditadura dos mortos?
Como evitar que tais práticas experimentais se reduzam a apanágio de um vanguardismo isolado e elitista? Que instituições econômicas, sociais e políticas permitiriam propagá-las para aproveitar a energia de todos? As respostas dadas a essas perguntas introduzem universo de debates diferente daquele que a humanidade herdou do século 19. As opções ideológicas e institucionais não se estão estreitando. Estão expandindo. Apenas ainda não sabemos reconhecê-las. Faltam-nos conceitos e palavras.
O Brasil, com sua vitalidade desmesurada e seu pendor para o improviso, estaria destinado a ocupar lugar de prol nessa tendência mundial. Se conseguíssemos equipar essa energia empreendedora e frustrada que rola pelo Brasil, transformaríamos radicalmente o país. Para que isso aconteça, entretanto, temos de preencher dois requisitos. O primeiro é a construção de ensino analítico e capacitador que, ao levantar todos os alunos, ofereça oportunidades especiais aos mais talentosos e aplicados. O segundo é o rompimento da camisa-de-força que vestimos em matéria de política econômica: uma política que, tal qual o padrão-ouro do século 19, subordina as exigências da economia real às conveniências da confiança financeira.
Não é verdade que a realidade nos impõe a pequenez. Somos nós que a impomos a nós mesmos.


Roberto Mangabeira Unger escreve às terças-feiras nesta coluna.
www.law.harvard.edu/unger


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