|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
ROBERTO MANGABEIRA UNGER
Autocondenação
Nesta hora em que o esvaziamento abrupto das esperanças
suscitadas pela eleição de 2002 agrava
os efeitos de duas décadas de estagnação desmoralizadora, é preciso perguntar com renovada urgência: o que
será do Brasil? Uma idéia domina hoje
a discussão a respeito de nosso futuro.
Está nas entrelinhas da maioria das
declarações até mesmo dos que se
opõem à política oficial. Plausível e sóbria, veste as roupagens do cosmopolitismo desiludido. Essa idéia, porém,
é falsa. Temos de repudiá-la para soerguer o país.
A idéia a repudiar se apresenta em
duas partes. Na primeira parte, ela
protesta que nossos governos deveriam defender com mais afinco os interesses do social, do trabalho e da
produção: por exemplo, preservando
os recursos da educação e da saúde e
forçando baixa mais rápida dos juros.
Na segunda parte, porém, ela admite
ser estreita a margem de manobra de
qualquer governo nacional nas circunstâncias atuais do país e do mundo. Nossa falta de dólares e nosso excesso de dívidas apenas reforçariam
os constrangimentos impostos pelo
triunfo da globalização e pelo malogro
das ideologias. Da junção da primeira
parte dessa idéia com a segunda resulta a lição constantemente repetida: temos de nos render, mas não precisamos exagerar.
Nada disso. O mundo assiste a grande transformação, vinda tanto de países mais ricos como os Estados Unidos como de países mais pobres como
a China. As nações e os setores que
maior êxito vêm conseguindo são
aqueles que ingressam seletivamente
num rumo que não é nem liberal nem
estatista. É experimentalista. O experimentalismo está sediado nas melhores escolas e nas melhores empresas,
mas de lá se pode difundir para toda a
sociedade e toda a cultura. Seu traço
marcante é privilegiar a inovação permanente. Empresas começam a se parecer com escolas. Escolas começam a
se parecer com equipes de pesquisadores atuando nas fronteiras do conhecimento. E administrações públicas começam a se parecer com inventores, experimentando soluções variadas para descobrir quais funcionam
melhor. Que movimento pode haver
mais radical e fecundo do que esse
-os vivos tentando derrubar a ditadura dos mortos?
Como evitar que tais práticas experimentais se reduzam a apanágio de um
vanguardismo isolado e elitista? Que
instituições econômicas, sociais e políticas permitiriam propagá-las para
aproveitar a energia de todos? As respostas dadas a essas perguntas introduzem universo de debates diferente
daquele que a humanidade herdou do
século 19. As opções ideológicas e institucionais não se estão estreitando.
Estão expandindo. Apenas ainda não
sabemos reconhecê-las. Faltam-nos
conceitos e palavras.
O Brasil, com sua vitalidade desmesurada e seu pendor para o improviso,
estaria destinado a ocupar lugar de
prol nessa tendência mundial. Se conseguíssemos equipar essa energia empreendedora e frustrada que rola pelo
Brasil, transformaríamos radicalmente o país. Para que isso aconteça, entretanto, temos de preencher dois requisitos. O primeiro é a construção de
ensino analítico e capacitador que, ao
levantar todos os alunos, ofereça
oportunidades especiais aos mais talentosos e aplicados. O segundo é o
rompimento da camisa-de-força que
vestimos em matéria de política econômica: uma política que, tal qual o
padrão-ouro do século 19, subordina
as exigências da economia real às conveniências da confiança financeira.
Não é verdade que a realidade nos
impõe a pequenez. Somos nós que a
impomos a nós mesmos.
Roberto Mangabeira Unger escreve às terças-feiras nesta coluna.
www.law.harvard.edu/unger
Texto Anterior: Rio de Janeiro - Carlos Heitor Cony: Eles merecem Próximo Texto: Frases
Índice
|