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TENDÊNCIAS/DEBATES
A tortura e o terrorismo
JARBAS PASSARINHO
Como ter na conta de justos os que, tomados de ira jupiteriana contra acusados de tortura, se negam a ver a hediondez dos terroristas?
AS GUERRILHAS e o terrorismo
existem há séculos e continuam sendo formas importantes de conflito armado. Uma "guerra
suja", porque, para ela, nunca se estabeleceu nenhum código de conduta e,
nela, os fins justificam os meios, mesmo os crimes hediondos. Agredido
pela luta armada desde 1966, o governo desbaratou as guerrilhas, a última
em 1974.
O processo de transição do presidente Ernesto Geisel para a democracia plena foi concluído com a emenda
constitucional de 13 de outubro de
1978, revogando os Atos Institucionais e Complementares, restaurando
as liberdades fundamentais, entre as
quais a de imprensa.
Em agosto de 1979, líder do governo João Figueiredo, coube a mim defender o projeto de anistia política,
essencial para a reconciliação nacional buscada. As galerias, dominadas
pela esquerda raivosa, aos berros nos
acusavam de fascistas e torturadores.
Não acenávamos com o perdão, que
pressupõe arrependimento. Intentávamos cicatrizar feridas e reconciliar
a nação por meio do esquecimento recíproco das violências mútuas, as
quais haviam despertado emoções intensas e dolorosas.
O esquecimento, no entanto, só seria observado pelos vencedores. Silenciei, em brevíssimo discurso, e
apenas por minutos, a onda avassaladora de insultos movidos pelo ódio
dos derrotados. Não tendo tido o
apoio do povo, que lhes era decisivo,
mascararam o repúdio da sociedade,
atribuindo a derrota à tortura, muitas
vezes falsa. Ódio que nunca cessou e
que agora recrudesce, a lembrar o diálogo, citado por Simone de Beauvoir,
entre a mulher de Maurice Thorez e
um deputado que estranhou "tanto
ódio no coração de uma mulher". Respondeu ela: "Não se pode amar o povo
sem odiar seus opressores".
Quase 30 anos depois, é isso o que
agora vem à baila no Brasil. A Lei da
Anistia foi sucessivamente ampliada
nos governos Figueiredo e Sarney e
excessivamente deformada no governo Fernando Henrique Cardoso, com
vultosas indenizações a anistiados,
indenizações que se transformaram
em indústria.
O presidente, que se auto-exilou,
legislou como se ressarcisse vítimas
dos campos de concentração stalinistas descritos por Soljenitsin. Num arroubo, disse ter sido o "dia mais feliz
de sua vida" aquele em que assinou o
decreto das indenizações milionárias
e altas pensões vitalícias livres do imposto de renda. Um prêmio compensador da derrota.
Alguns, decentes, recusaram o benefício. José Genoino, guerrilheiro
quando comunista do PC do B no Araguaia, protestou dizendo que nem a
luta armada justificava vantagem financeira. Ana Leocádia, filha de Prestes, teve a mesma repugnância.
Antes da anistia, advogados fizeram renome defendendo presos em
processos no Superior Tribunal Militar, um tribunal que, generosamente,
absolveu ou reduziu centenas de sentenças de primeira instância e mereceu os maiores elogios de Josaphat
Marinho, Paulo Brossard, Evaristo de
Morais e criminalistas talentosos.
Advogados especializados em defender presos de motivação insurgente,
alguns se elegeram deputados, outros
ganharam renome pelo mérito ou
enriquecerem falseando a verdade.
A tortura, se comprovada, é como o
terrorismo. Mas há os que só num deles fazem cair a sua ira. Acusam de
apologista da tortura quem defende
difamados. Julgam iguais os desiguais
e fazem santos os terroristas. Com
igual leviandade, poderiam ser acusados de apologistas do terrorismo. Parecem justificar o terrorista esfacelar
o corpo de um soldado de sentinela de
serviço no seu quartel, assassinar filhos do povo como vigilantes de bancos ou segurança de embaixadores e
estourar o crânio de um tenente da
Polícia Militar, refém voluntário, para salvar seus soldados feridos.
Dizem-se de consciência limpa
muitos a quem a catarata ideológica
só permite ver a tortura, mas, convenientemente opaca, não deixa ver os
crimes igualmente perversos dos terroristas.
Como tê-los na conta de justos, tomados de ira jupiteriana contra acusados de tortura, se não vêem, porque
se negam a ver, a hediondez dos terroristas? E por que endossam versões
falsas, como a de que crianças foram
encarceradas e torturadas, quando,
na verdade, presos os pais em casa,
não havendo babás, uma policial se
ofereceu para levá-los para a sua própria casa até chegarem os parentes
moradores em outro Estado? Foram
entregues sãos e salvos.
Prefiro aplaudir o jurista Manoel
Ferreira Filho, que entende a anistia
como "uma pedra no passado". E a
sensatez do ex-presidente José Sarney, preferindo o silêncio que vale por
esquecimento. Silenciarei, também.
JARBAS PASSARINHO, 86, é coronel da reserva. Foi governador do Pará (1964-65) e senador por aquele Estado
em três mandatos (1967-74, 1975-82 e 1987-95), além de
ministro da Educação (governo Médici), da Previdência
Social (governo Figueiredo) e da Justiça (governo Collor).
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