São Paulo, terça-feira, 28 de novembro de 2006

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Liberdade e autonomia universitária

CECI JURUÁ, LAURA TAVARES SOARES e ROBERTO LEHER

Os recentes acontecimentos envolvendo Sader ilustram a confrontação entre a mídia e o pensamento livre produzido na universidade

HISTORICAMENTE, a universidade pública tem sido muito atacada pelos que se vêem ameaçados pelas manifestações do pensamento livre, crítico e autônomo nela produzido. Nas sociedades contemporâneas, as investidas mais duras provêm das corporações da mídia, verdadeiros partidos políticos, como salientou Antonio Gramsci, muito pouco tolerantes com o pensamento independente e com as mediações singulares que configuram a universidade, como ficou evidente no episódio da publicação por esta Folha da "Lista de improdutivos da USP".
Os recentes acontecimentos envolvendo Emir Sader, intelectual reconhecido internacionalmente por seu engajamento acadêmico-político, são ilustrativos dessa confrontação. Por ter se insurgido contra agressiva ameaça do senador Bornhausen -que preconizava o aniquilamento de uma perigosa "raça": "Vamos nos livrar dessa raça (os petistas) pelo menos por 30 anos"-, foi condenado, pelo delito de opinião (situação que a Constituição não admite), a um ano de prisão e à perda do cargo de professor obtido em concurso público.
Surpreendentemente, a Folha inseriu o tema Sader como pauta jornalística não pela polêmica envolvendo a sentença despropositada e desproporcional. Sader foi desqualificado como "um intelectual zero à esquerda", e o manifesto (nunca divulgado pela Folha) em seu favor foi tido como "oportunista e hipócrita". Como explicar que um professor desprovido de credenciais acadêmicas tenha sido eleito para o prestigioso cargo de secretário-executivo do Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais? Será que Antonio Candido, Chico Buarque, Chico de Oliveira, Luis Fernando Verissimo e Perry Anderson, entre tantas outras referências acadêmicas e culturais, firmariam seus nomes em um manifesto hipócrita?
Com a mesma acidez, a pauta Emir Sader enveredou por um caminho ainda mais tortuoso quando um articulista fez menção a um processo em que Sader é arrolado como testemunha, deixando no ar suspeitas quanto a sua honorabilidade ética. A suspeita esboçada na mencionada matéria diz respeito ao custo de um livro publicado por um projeto coordenado por Sader. Contudo, em nenhum momento a Folha procurou as informações sobre o tema já disponibilizadas ao público (ver no site www.lpp-uerj.net/outrobrasil).
Se assim tivesse feito, teria constatado que não há nenhum problema referente à edição do livro, fato corroborado pela renovação do projeto, por duas vezes, pela fundação que o apóia, a partir da avaliação positiva do seu mérito e de rigorosa prestação de contas. Uma síntese desse esclarecimento pode ser vista no "Painel do Leitor" desta Folha (18/11), na carta de Mariana Setúbal, que resume a nota pública do projeto.
É preocupante que o jornal não tenha se sensibilizado com as graves implicações da sentença para a autonomia universitária e a liberdade de pensamento. A decisão determina a perda do cargo obtido por concurso público como punição exemplar que deve ser escutada por todos os que ousam criticar as vozes do poder.
A questão foi perfeitamente compreendida por Cerqueira Leite em seu artigo publicado neste espaço (dia 16/11). No período da ditadura empresarial-militar, esse afastamento exigia um ato de força; agora, com a decisão judicial, dar-se-ia por meios mais suaves, mas com o mesmo propósito: o silenciamento da crítica. Esse é o busílis da questão.
As contendas entre as corporações da mídia e o pensamento crítico não seriam um problema se os meios de difusão de mensagens das grandes empresas e da universidade pública não fossem tão desproporcionais. Pior que a assimetria de condições,
porém, seria a perda dos espaços públicos de produção de conhecimento. Não fosse a universidade pública, as corporações da mídia teriam condições muito melhores para propagar, sem contestação, a maldição de Thatcher de que "não há alternativa". Claro, seria muito melhor se a batalha das idéias pudesse ser realizada também em jornais democráticos e abertos à pluralidade de pensamento.
Contudo, a autonomia e a liberdade de pensamento não são dádivas divinas, mas conquistas históricas, fruto das lutas sociais. É nisso que acreditamos e estamos engajados.


CECI JURUÁ, economista, mestre pela Universidade de Montpellier (França), LAURA TAVARES SOARES, doutora em economia pela Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e professora da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e ROBERTO LEHER, doutor em educação pela USP e professor da UFRJ, participam do Projeto Outro Brasil, do Laboratório de Políticas Públicas da Uerj (Universidade Estadual do Rio de Janeiro).

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