São Paulo, sexta-feira, 28 de novembro de 2008

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TENDÊNCIAS/DEBATES

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Crise de fé

JORGE CLAUDIO RIBEIRO


Líderes deveriam usar hoje sua expertise para, com as comunidades que guiam, ajudar a humanidade a recuperar a fé em si mesma

NOS ÚLTIMOS meses, o cenário econômico vem apresentando contínua queda no preço das mercadorias. No entanto, uma commodity de sutil leveza teve sua cotação elevada às alturas. Não, não é o dólar. Refiro-me à fé, tão valiosa que seu desaparecimento de cena precipitou uma crise global que já estava incubada. Estendendo para a fé a metáfora genial de Georg Simmel, que compara o dinheiro ao sangue, vemos que fluidez é a natureza dessas três realidades: só quando circulam elas conseguem manter saudável um organismo. O oposto disso é gangrena, recessão e desespero.
Quem poderia prever que nossa Modernidade, tão secular e racional, estaria passando por profunda crise de fé? Desde que o colapso imobiliário-financeiro infectou a economia dos EUA e a do resto do mundo, pululam no noticiário expressões como "índice de confiança" (de investidores e consumidores), "crença dogmática" (no liberalismo), "fundamentalismo" (regulatório) e "crédito" (liberação/ retenção). Aliás, "crédito" deriva do latim credere, que significa crer, confiar em algo ou em alguém.
A fé também foi crucial na eleição de Barack Obama, apontado pela maioria como digno de crédito. No discurso da vitória, qual messias da mudança e profeta da esperança, anunciava que tudo é possível e que o "american dream" continua vivo. Como um Moisés mulato, esconjurou o temor e a dúvida e conclamou seu povo a avançar, guiado pelo farol da nação. Ao final, em litania, repetia o mote "Sim, nós podemos", ecoado com fervor pelo público.
Não é fora de propósito aplicar a idéia de fé a esses contextos, pois ela é o alicerce de toda a existência humana. O bebê sobrevive se percebe que é acolhido; o jovem se projeta para a vida se nela vê sentido; sem fé, ninguém salta da cama, lê jornais, sai à rua, almoça fora, joga na loteria, ama ou dirige a palavra a alguém.
Sem fé, o tecido social se esgarça. No fundo, a fé é identificar uma possibilidade promissora e entregar-se a ela, como fez o caldeu Abrão, o "pai de todos os crentes".
Porque somos humanos, a fé é certeza mesclada à dúvida -nela convivem aspectos sublimes, mas também sombrios. Ambivalente, ela é favorável quando irriga o conjunto da vida, mas é nociva quando extirpa dimensões, como a racionalidade e nossa dramática fragilidade. Nesses casos, abre-se espaço para a cegueira e a fuga do mundo, para o estouro da manada e o fanatismo, que prejudicam a economia, a política e as religiões. O oposto disso é a fé madura, a qual se apóia na análise crítica: afinal, ninguém deve sair ingenuamente por aí confiando no primeiro que aparece, como patinhos recém-nascidos, que seguem qualquer coisa que se move à sua frente.
O problema se agrava quando as grandes instituições concorrem entre si e instauram uma "guerra de deuses", no dizer de Max Weber. Assim, ao longo da crise atual, apareceram religiosos falando em "castigo divino", "declínio moral", "idolatria do mercado", "futilidade do dinheiro" ou "realidades de segunda ordem". Essa peroração é inócua perante países em recessão, empresas falidas, desempregados, famílias sem casa, pais que não conseguem custear o estudo dos filhos ou pessoas compelidas a ingerir antidepressivos.
Em vez de tirar casquinha ("eu não avisei?") em favor de suas verdades eternas, tais líderes deveriam usar hoje sua expertise para, com as comunidades que guiam, ajudar a humanidade a recuperar a fé em si mesma.
Um passo fundamental é manifestar compaixão. Assim fez Jesus, que, ao olhar para a multidão, exclamou: "Eles têm fome". A partir daí, convenceu seus ouvintes a abrir as bolsas e compartilhar os pães, agora multiplicados. Só depois proferiu o maravilhoso sermão do Pão da Vida.
Esta crise global exige soluções globais, de fóruns multilaterais. A crise também envolve valores. A seu modo, as religiões deveriam fazer um esforço conjunto para ampliar a compaixão competente, a reflexão ética e propor novos padrões para os negócios e o consumo. Para a consideração de uma eventual cúpula mundial multirreligiosa sobre tudo isso, sugiro duas referências. A primeira é o apóstolo Tomé, que, antes, enfiou o dedo na ferida do Mestre e, a seguir, proclamou a sua fé. A outra referência é Muhammad Yunus, Prêmio Nobel da Paz de 2006, que ofereceu microcrédito e esperança para milhões de pobres, que, no fim das contas, são quem paga o pato.

JORGE CLAUDIO RIBEIRO , 59, é professor titular do Departamento de Teologia e Ciências da Religião da PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo) e editor da Olho d'Água.



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