São Paulo, quinta-feira, 28 de dezembro de 2006

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TENDÊNCIAS/DEBATES

A questão do acesso aos anti-retrovirais

JARBAS BARBOSA DA SILVA JR.

Não haverá nunca soluções simplistas para garantir a sustentabilidade do programa de enfrentamento da epidemia de Aids

ARTIGO PUBLICADO nesta Folha, em 30/11, faz reflexões importantes sobre os avanços e os desafios colocados ao SUS (Sistema Único de Saúde) na questão do enfrentamento da epidemia de Aids. Concordo, inteiramente, com grande parte das questões levantadas pelos dois autores. No entanto, ao abordar o tema da sustentabilidade do programa brasileiro de Aids no fornecimento de medicamentos anti-retrovirais (ARVs), os autores transformam um instrumento, a licença compulsória (LC), que pode e deve ser usada em situações específicas, em uma verdadeira panacéia.
A LC nos garantiria, para sempre, ARVs a preços baixos, e sua utilização dependeria, apenas, da vontade política do governo federal? Essas idéias não correspondem aos fatos. A LC precisa atender a regras da legislação nacional e internacional. Usá-la sem que as condições estejam dadas é correr um sério risco de derrota judicial, com graves prejuízos para a capacidade de negociação de preços e para a reputação do programa e do país.
Diante de uma emergência nacional, produzida por epidemia descontrolada, por exemplo, há pleno amparo legal para uma LC. Até os EUA cogitaram usar esse mecanismo na crise do uso intencional do antraz. A outra possibilidade legal, em caso de interesse público, é ampla o bastante para incluir diversas interpretações a favor de sua utilização e para apoiar sua contestação. Entre os argumentos de difícil sustentação legal, encontra-se a alegação de dificuldade orçamentária, pois esse, provavelmente, é o mais universal dos problemas enfrentados pelos Ministérios da Saúde de todos os países em relação aos medicamentos de alto custo.
Fundamental para a decisão sobre a LC é também estabelecer se há capacidade efetiva de produção nacional. Não estamos falando aqui do potencial de vir a produzir em um dia incerto do futuro, mas da capacidade de substituir, rapidamente, o produto que foi objeto da LC, de maneira que não cause nenhum dano às pessoas que o utilizam. Se falharmos, só há uma alternativa: comprar de produtores, muitas vezes não qualificados pela Organização Mundial da Saúde.
No caso concreto, dos três ARVs sob patente que mais impactam nosso orçamento, só dominamos, em tese, a tecnologia de fabricação de um deles. O que faríamos com os outros dois? Uma aposta, com um desfecho incerto sobre o êxito em dominarmos a tecnologia de produção? E em relação aos novos medicamentos que estão sendo lançados, ficaríamos privados deles por anos ou décadas até dominarmos a sua produção?
Sobre a referida capacidade da produção nacional, é importante esclarecer que ainda não se fabrica quase nenhum dos ARVs que não se encontram mais sob patente. Importa-se a matéria-prima, e o produto é apenas finalizado. Não é mais adequado (e mais seguro para os pacientes) que a prioridade seja dada para dominar toda a tecnologia de produção? Assim, certamente estaríamos mais preparados quando houvesse a necessidade de emitir uma LC.
Outro mito é o de que a produção nacional sempre barateia o medicamento. Em um dos estudos citados no artigo, exatamente o único que traz dados e informações consistentes, realizado pela Fundação Clinton, encontra-se o diagnóstico de que os ARVs produzidos no país custam de duas a quatro vezes o preço do mercado internacional.
Também não se baseia em fatos a afirmação de que a estratégia de negociação de preços não tem produzido resultados. Vamos aos números: entre 2003 e 2006, reduzimos o preço do Efavirenz em 45,4% (de R$ 6,35 para R$ 3,74); do Tenofovir, em 207,7% (de R$ 27,48 para R$ 8,93); e do Kaletra, em 204% (de R$ 4,50 para R$ 1,48). Essa redução não se deveu à sensibilidade da indústria farmacêutica, e sim a uma política correta de confronto e negociação, apoiada na grande visibilidade e prestígio que nosso programa nacional desfruta internacionalmente.
O caso do Kaletra é emblemático, pois conseguimos, na negociação, um preço menor do que o ofertado por um produtor indiano, sem pré-qualificação da OMS, a quem teríamos de recorrer fatalmente se houvesse sido emitida a LC.
Não haverá nunca soluções simplistas para garantir a sustentabilidade do programa. Sempre será necessário utilizar todas as armas disponíveis, como a negociação de preços, o desenvolvimento da capacidade produtiva nacional, os acordos para licenças voluntárias e, em casos em que haja necessidade e condições, a licença compulsória. O debate sobre esses temas é fundamental, melhor ainda se apoiado na realidade.


JARBAS BARBOSA DA SILVA JR. , 49, médico epidemiologista, doutor em saúde coletiva pela Unicamp, é secretário-executivo do Ministério da Saúde.


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