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TENDÊNCIAS/DEBATES
A questão do acesso aos anti-retrovirais
JARBAS BARBOSA DA SILVA JR.
Não haverá nunca soluções simplistas para garantir a sustentabilidade do programa de enfrentamento da epidemia de Aids
ARTIGO PUBLICADO nesta Folha, em 30/11, faz reflexões importantes sobre os avanços e
os desafios colocados ao SUS (Sistema Único de Saúde) na questão do enfrentamento da epidemia de Aids.
Concordo, inteiramente, com grande parte das questões levantadas pelos dois autores. No entanto, ao abordar o tema da sustentabilidade do
programa brasileiro de Aids no fornecimento de medicamentos anti-retrovirais (ARVs), os autores transformam um instrumento, a licença compulsória (LC), que pode e deve ser
usada em situações específicas, em
uma verdadeira panacéia.
A LC nos garantiria, para sempre,
ARVs a preços baixos, e sua utilização
dependeria, apenas, da vontade política do governo federal? Essas idéias
não correspondem aos fatos. A LC
precisa atender a regras da legislação
nacional e internacional. Usá-la sem
que as condições estejam dadas é correr um sério risco de derrota judicial,
com graves prejuízos para a capacidade de negociação de preços e para a
reputação do programa e do país.
Diante de uma emergência nacional, produzida por epidemia descontrolada, por exemplo, há pleno amparo legal para uma LC. Até os EUA cogitaram usar esse mecanismo na crise
do uso intencional do antraz. A outra
possibilidade legal, em caso de interesse público, é ampla o bastante para
incluir diversas interpretações a favor de sua utilização e para apoiar sua
contestação. Entre os argumentos de
difícil sustentação legal, encontra-se
a alegação de dificuldade orçamentária, pois esse, provavelmente, é o mais
universal dos problemas enfrentados
pelos Ministérios da Saúde de todos
os países em relação aos medicamentos de alto custo.
Fundamental para a decisão sobre
a LC é também estabelecer se há capacidade efetiva de produção nacional. Não estamos falando aqui do potencial de vir a produzir em um dia incerto do futuro, mas da capacidade de
substituir, rapidamente, o produto
que foi objeto da LC, de maneira que
não cause nenhum dano às pessoas
que o utilizam. Se falharmos, só há
uma alternativa: comprar de produtores, muitas vezes não qualificados
pela Organização Mundial da Saúde.
No caso concreto, dos três ARVs
sob patente que mais impactam nosso orçamento, só dominamos, em tese, a tecnologia de fabricação de um
deles. O que faríamos com os outros
dois? Uma aposta, com um desfecho
incerto sobre o êxito em dominarmos
a tecnologia de produção? E em relação aos novos medicamentos que estão sendo lançados, ficaríamos privados deles por anos ou décadas até dominarmos a sua produção?
Sobre a referida capacidade da produção nacional, é importante esclarecer que ainda não se fabrica quase nenhum dos ARVs que não se encontram mais sob patente. Importa-se a
matéria-prima, e o produto é apenas
finalizado. Não é mais adequado (e
mais seguro para os pacientes) que a
prioridade seja dada para dominar toda a tecnologia de produção? Assim,
certamente estaríamos mais preparados quando houvesse a necessidade
de emitir uma LC.
Outro mito é o de que a produção
nacional sempre barateia o medicamento. Em um dos estudos citados no
artigo, exatamente o único que traz
dados e informações consistentes,
realizado pela Fundação Clinton, encontra-se o diagnóstico de que os
ARVs produzidos no país custam de
duas a quatro vezes o preço do mercado internacional.
Também não se baseia em fatos a
afirmação de que a estratégia de negociação de preços não tem produzido resultados. Vamos aos números:
entre 2003 e 2006, reduzimos o preço
do Efavirenz em 45,4% (de R$ 6,35
para R$ 3,74); do Tenofovir, em
207,7% (de R$ 27,48 para R$ 8,93); e
do Kaletra, em 204% (de R$ 4,50 para
R$ 1,48). Essa redução não se deveu à
sensibilidade da indústria farmacêutica, e sim a uma política correta de
confronto e negociação, apoiada na
grande visibilidade e prestígio que
nosso programa nacional desfruta internacionalmente.
O caso do Kaletra é emblemático,
pois conseguimos, na negociação, um
preço menor do que o ofertado por
um produtor indiano, sem pré-qualificação da OMS, a quem teríamos de
recorrer fatalmente se houvesse sido
emitida a LC.
Não haverá nunca soluções simplistas para garantir a sustentabilidade do programa. Sempre será necessário utilizar todas as armas disponíveis, como a negociação de preços, o
desenvolvimento da capacidade produtiva nacional, os acordos para licenças voluntárias e, em casos em que
haja necessidade e condições, a licença compulsória. O debate sobre esses
temas é fundamental, melhor ainda
se apoiado na realidade.
JARBAS BARBOSA DA SILVA JR. , 49, médico epidemiologista, doutor em saúde coletiva pela Unicamp, é secretário-executivo do Ministério da Saúde.
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