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Mais repressão, menos liberdade
MARCELO SEMER
É preciso resistir à sanha repressora. Mais pena, mais vigilância e mais controle podem representar menos direitos, menos democracia
UM GRANDE equívoco que se
pode cometer é compreender
a sociedade dividida entre
bons e maus, honestos e malfeitores,
e imaginar que é possível suprimir o
grau de liberdade de alguns sem afetar todos os demais. Muitos apregoam com ênfase a necessidade de
um forte recrudescimento legal como
solução para a criminalidade, sem ter
consciência das conseqüências que o
gigantismo de um Estado policial pode provocar à liberdade de todos.
Recentemente divulgada, pesquisa
encomendada pela Associação dos
Magistrados Brasileiros relatou que a
maioria dos juízes entrevistados se
manifesta favorável ao aumento das
sanções penais e à redução da maioridade penal, entre outras propostas de
igual rigor. A opinião dos magistrados
está longe de ser isolada na sociedade.
Há quase um reclamo generalizado
pelo endurecimento do sistema, cujos
reflexos, a bem da verdade, já são sentidos no cotidiano forense.
A banalização da prisão temporária
tem sido louvada como um dos trunfos da repressão. De exceção das exceções dentro do sistema processual, a
custódia antecipada está se transformando em norma geral, sendo comum que o processo se inicie com a
prisão do suspeito, justamente para
investigá-lo. Agora, formulam-se propostas de emenda para que a polícia
tenha autonomia para prender, mesmo sem autorização de um juiz.
Há algum tempo convivemos com a
popularização das buscas e apreensões, para encontrar quem quer que
esteja praticando um crime, em qualquer residência de certo perímetro.
Em muitos casos, as vítimas eram faveladas e suas angústias pouco sensibilizaram a sociedade; em outros, a
repercussão foi maior, quando se dirigiu a renomados escritórios em busca
de provas de crimes alheios. Mas a banalização pode cair na mesma lógica:
invadir primeiro, perguntar depois.
Situação similar tem ocorrido com
a generalização da interceptação telefônica, verdadeira coqueluche da investigação policial. O crescimento exponencial da invasão legal da privacidade, ou seja, com autorização judicial, também tem feito a exceção virar
regra, reduzindo a cautela e a parcimônia do operador do direito em solicitá-la ou permiti-la. Interceptar virou providência preliminar de investigação, e, apesar de legalmente sigilosa, não raro se torna pública, mesmo antes de um julgamento.
Os incidentes recentes envolvendo
o grampo de telefones de jornalistas
desta Folha demonstram claramente
os perigos da vulgarização. Um suspeito investigado e todos os que tiveram contato com ele passíveis de ter a
privacidade invadida, sem nenhuma
apuração prévia. É a inversão da presunção de inocência. Se não foi por
acaso, como alegado, tal interceptação seria ainda mais danosa -o direito ao silêncio da fonte é tão relevante
a ponto de ser tutelado diretamente
pela Constituição, pois a imprensa livre é um dos pilares da democracia.
O receio é o de que estejamos nos
perdendo na busca dos fins, esquecendo da importância da integridade
e proporcionalidade dos meios.
Devemos nos lembrar de que foi na
defesa contra o terror, um fim em
princípio legítimo, que o governo
Bush se ancorou para violar, em proporção mais assustadora, os mesmos
direitos que aqui se discutem: a prisão sem processo de estrangeiros em
Guantánamo, a espionagem telefônica preventiva de cidadãos, a acusação
contra jornalistas por recusa em divulgar fontes de reportagens.
É preciso resistir a essa sanha repressora. Mais pena, mais prisão,
mais vigilância e mais controle podem representar menos direitos, menos liberdades e menos democracia
para todos. O antídoto ao retrocesso
nas liberdades civis é a preservação
incondicional de direitos fundamentais, muitas vezes sufocados na "luta
contra o crime", além da expansão da
liberdade de expressão, eficaz arma
contra o totalitarismo.
Nesse campo, todavia, ainda temos
muito a avançar, a despeito da opinião quase unânime dos magistrados
acerca da importância da preservação
da liberdade de expressão para a democracia, em resposta à mesma pesquisa. Casos de censuras judiciais a
jornais e publicações têm se multiplicado, muitas vezes supervalorizando
a defesa da honra, em especial de políticos, particularmente suscetíveis
quando se trata da exposição de pensamentos divergentes ou relato de irregularidades.
Quando se trata de aumentar penas, encarcerar os mais jovens, aprofundar os instrumentos de vigilância,
banalizar a invasão do domicílio e da
privacidade, é preciso demasiada
cautela. Corre-se o risco de jogar o
bebê fora com a água do banho. A repressão à criminalidade não pode
fundamentar supressão de direitos
que justifique recaída autoritária.
MARCELO SEMER , 40, é juiz de direito em São Paulo e
presidente do Conselho Executivo da Associação Juízes
para a Democracia.
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