São Paulo, domingo, 29 de fevereiro de 2004

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TENDÊNCIAS / DEBATES

Ética pública e elogio da serenidade

TARSO GENRO


O PT sairá dessa crise mais forte, coeso, realista sobre si mesmo, mais comprometido com a ética na política

O escândalo que a imprensa está promovendo em torno de um funcionário do segundo escalão do governo federal, flagrado cometendo ilegalidades, é compreensível por três motivos óbvios: era um funcionário com tarefas de representação do governo no Poder Legislativo; era funcionário de um governo que tem, no seu centro hegemônico, um partido que busca se caracterizar como modelar do ponto de vista da ética pública; na oposição, esse partido sempre foi extremamente rigoroso com as condutas ilícitas.
O que aconteceu com o ministro José Dirceu pode acontecer a qualquer um de nós: ter alguém ao nosso lado, sem que saibamos, que comete violações éticas e legais graves, traindo a nossa confiança e abrindo espaços para ataques sem nenhum senso de medida. Faz parte da vida, faz parte da democracia. O ministro Dirceu sairá isentado desse processo porque pode ter cometido erros ao longo da sua vida -como qualquer um de nós-, mas é um homem honesto, comprometido com a verdade e com a dignidade da função pública.
Quero, porém, extrair uma lição do episódio, em favor do nosso partido. Diferentemente do que os nossos adversários e uma parte da imprensa afirma, esse acontecimento não denuncia a ruína moral do PT, mas evidencia um problema que atinge toda e qualquer comunidade organizada. Sempre sustentei que nenhum partido, nenhum agrupamento humano, nenhuma organização política, nenhuma delas "é uma comunidade de anjos". Pela simples, empírica e verdadeira constatação de que, onde está a regra, está a vontade de a violar, e onde está o ser humano, está a possibilidade de uma ação contra as normas morais ou jurídicas estabelecidas.
O acontecimento é obviamente desgastante para o nosso governo, mas isso é plenamente reversível, a partir de medidas concretas que estamos tomando -investigações e sindicâncias "doa a quem doer", como disse o presidente Lula. A denúncia, porém, pode ser extraordinariamente positiva para o PT. Por quê? Porque estamos duramente alertados de que os nossos governos não são imunes a esse tipo de infiltração e porque precisamos, todos nós do PT, estar mil vezes mais atentos às relações que somos levados a travar na nossa ação política cotidiana.
As relações entre moral e política ou entre ética e política são muito complexas. O mais importante que o nosso partido deve absorver num momento como este é provavelmente uma das tantas lições de Norberto Bobbio: "A política não é tudo; a idéia de que tudo seja política é simplesmente monstruosa".
Professar alguma ideologia, adotar um programa que parece ser o melhor para a sociedade e para a humanidade, defender o que parecem ser os interesses concretos e históricos dos oprimidos por si só não dá superioridade ético-política a ninguém. O que dá superioridade ético-política a um partido no poder não é não ter desvios de conduta, porque isso é absolutamente impossível, mas é ter mecanismos internos de repressão e punição a esse tipo de prática não-política. É saber processar as experiências negativas visando a reformulação permanente da cultura partidária de governo, que o poder sempre estimula a se tornar conservadora.
Um projeto partidário deve ser sempre concebido como "imperfeito" e que tende, invariavelmente, à acomodação e ao conservadorismo. Isso não diz respeito ao PT, mas a qualquer organismo de natureza social, que está obrigado a também se constituir como burocracia para poder governar. Aqui o que vale é sempre Weber, e não Marx.
Não tem nenhuma sustentação a idéia de que esse acontecimento "acaba com as ilusões a respeito do PT" ou que o "PT começou a sua ruína moral", ou mesmo que o partido não pode mais ser um paradigma de ética pública após o "affair" Waldomiro. Opiniões como essas revelam, na verdade, um interesse político -legítimo ou ilegítimo- de que isso ocorra. Tanto para justificar as teses da oposição de direita ou de "esquerda", como eventualmente para dizer que todos os partidos são iguais.
Segundo essa visão, dá no mesmo votar em partidos éticos, amorais ou imorais, comprometidos ou não com o bem público, porque todos, no fundo, são a mesma coisa. Uma indiferenciação autoritária e até mesmo fascistizante, que atinge, na verdade, a política democrática. Ao dizer, ainda que de maneira velada, que "tudo é política" e a política revela-se sempre como delinquência e ilegalidade, o que se elogia é o niilismo, a passividade e, certamente, a expectativa de que alguém faça política por nós: provavelmente os "técnicos" que defendem que a sociedade pode ser aperfeiçoada sem os impasses que são a própria essência da república democrática.
Há uma outra lição de Bobbio que serviria não somente para o PT, quando este era oposição ao governo federal, mas para todos os que participam desse contencioso na primeira crise política do governo Lula -da qual o próprio presidente está liminarmente isento: "Acima de tudo, a serenidade é o contrário da arrogância, entendida como opinião exagerada sobre os próprios méritos, que justifica a prepotência".
O PT sairá dessa crise mais forte, coeso, realista sobre si mesmo, mais comprometido com a ética na política do que antes. Vejamos se a arrogância de boa parte dos nossos acusadores, que até ontem governavam, cede lugar também à serenidade em defesa do Brasil.

Tarso Genro, 56, advogado, é o ministro da Educação. Foi ministro da Secretaria Especial do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social da Presidência da República (2003).


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