São Paulo, quarta-feira, 29 de março de 2000


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Renegociar para governar


A pior das maldades está por vir: a renegociação da dívida de São Paulo, já assinada por Pitta


MARTA SUPLICY

Diante do desrespeito, das falcatruas e dos desmandos que foram cometidos nestes últimos oito anos na Prefeitura de São Paulo, não basta o afastamento do prefeito, pois a máquina podre tem de ser desmontada. Por isso é necessária a CPI da corrupção. Mas, em meio a toda essa perplexidade e diante do que já foi feito de errado, pouca gente percebe que a pior das maldades está por vir: a renegociação da dívida de São Paulo, já assinada por Pitta. É preciso clarear os termos do acordo que está para ser votado no Senado e suas implicações político-administrativas.
Desde o início do governo Maluf, a Prefeitura de São Paulo vem passando por um processo de grave deterioração de sua situação financeira. A dívida fundada da prefeitura passou, em valores atuais, de R$ 3,7 bilhões no início da gestão Maluf para R$ 14 bilhões ao final do ano passado, quase quadruplicando, em termos reais. O mais grave é que o endividamento não foi usado para beneficiar a população da cidade, mas para obras de interesse duvidoso e, suspeita-se, para financiar os esquemas de corrupção há muito denunciados.
Essa dívida no final de 1992 correspondia a 77% da receita própria municipal (receita menos empréstimos) e ao final de 1999 já comprometia 220% dela. Além disso, no final do governo Maluf foi gerado um volume de atrasados de pagamentos ao mercado de R$ 1 bilhão, que persiste até hoje, com tendência à ampliação. Além do endividamento patrocinado por Maluf, as taxas de juros praticadas durante esse período pelo governo FHC contribuíram e muito para que essa dívida se multiplicasse, o que vem minando implacavelmente as finanças da prefeitura.
Em meados de 1999, a prefeitura não conseguiu mais rolar sua dívida mobiliária e foi socorrida pelo governo federal, que interveio para evitar problemas para o Banco do Brasil e Banespa, que carregavam a dívida. Restou, como última alternativa para resolver o impasse, a renegociação. Em 13 de dezembro foi assinado o acordo de refinanciamento da dívida da prefeitura, no montante de R$ 10,5 bilhões, devendo ser submetido ao Senado para aprovação.
Pelo acordo, o refinanciamento será por 30 anos, com juros de 6% ao ano (mais a variação IGP-DI) caso a prefeitura quite 20% do total refinanciado em 30 meses.
Se cumprida a amortização de 20% em 30 meses, ficam comprometidos 13% da receita líquida real (RLR). Isso significará o pagamento, entre a amortização dos 20% e as parcelas, de mais de R$ 5 bilhões entre 2001 e 2004, uma média de mais de 22% da RLR por ano durante esse período -diante dos R$ 244 milhões que a prefeitura pagou em 1999. O mais cruel é que, se os prazos não forem cumpridos, o acordo prevê punição ainda mais severa: os juros poderão subir ao nível da taxa Selic, comprometendo até 17% da receita líquida real durante os próximos 30 anos.
A questão principal desse acordo é a absoluta impossibilidade de a prefeitura viabilizar em 30 meses cerca de R$ 2,1 bilhões e ainda pagar o notável volume de atrasados existentes. O acordo dá ao governo federal os instrumentos jurídicos necessários para confiscar na boca do caixa da prefeitura todo o valor dessa dívida, desviando a receita do município para o Tesouro Nacional.
O prefeito e o ministro da Fazenda assinaram o contrato de refinanciamento sabendo que pelo menos parte dele não será cumprida. O contrato assinado é claramente inviável. Compromete a prestação dos serviços públicos básicos da cidade, já em situação lastimável após anos de administração irresponsável. Quem estará sendo punido não serão os responsáveis pela dívida e pelo mau uso do dinheiro público: será o paulistano.
É fundamental que o Senado Federal analise essa questão, sob pena de se inviabilizarem as próximas administrações da cidade, que teriam que deslocar parcela significativa da receita para o pagamento da dívida, não apenas zerando os investimentos, mas também comprometendo a manutenção dos serviços essenciais pelos quais a prefeitura é responsável.
A proposta de refinanciamento que está no Senado não interessa a São Paulo e não é viável tecnicamente para as finanças municipais nos próximos anos. Uma nova proposta de acordo deve envolver, além de uma taxa de juros minimamente razoável no padrão internacional para financiamentos desse tipo e prazo, um comprometimento da receita líquida municipal que não puna os paulistanos pelos próximos 30 anos.
Quando falamos de São Paulo, estamos falando da maior cidade do Brasil, do principal centro financeiro e industrial da nação. Inviabilizar São Paulo é comprometer o futuro do Brasil, é tentar fazer o país andar sem um de seus motores. É por isso que estou convidando partidos e pré-candidatos à prefeitura a entrar nessa discussão, debatendo diretamente com o Senado e com o ministro da Fazenda os termos desse acordo. E o povo de São Paulo a se manifestar ativamente. Quem ama de verdade esta cidade e está realmente preocupado com São Paulo não pode fugir a essa responsabilidade.


Marta Suplicy, 55, psicanalista, é presidente do Instituto Florestan Fernandes e pré-candidata do PT ao governo municipal de São Paulo. Foi deputada federal pelo PT-SP.



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