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Os avanços no transplante de córnea
CLAUDIO LOTTENBERG
Apesar de ser um processo simples, em razão das características do órgão, a situação do Brasil, há
dez anos, era vergonhosa
POUCO SE falou de uma grande
conquista da medicina: há mais
de um século, o austríaco Edward Konrad Zirm realizou o primeiro transplante de córnea, com êxito,
de um garoto morto em acidente para
um operário adulto que feriu os olhos
com soda. Desde então, essa maravilha médica evoluiu muito com novos
antibióticos e técnicas de microcirurgia, antiinflamatórios e imunossupressores, conservação da córnea etc.
A córnea, ao contrário dos outros
órgãos, não é vascularizada, o que é
uma vantagem natural no transplante: facilita a conservação e pode ser
retirada do cadáver até seis horas depois do óbito, o que simplifica e barateia o transplante. Além disso, com as
técnicas modernas, um mesmo doador resolve doenças diferentes em
dois pacientes diferentes.
O Brasil sempre acompanhou essa
evolução, enquanto nossos profissionais criaram técnicas -algumas empregadas em outros centros. Além
disso, criou um sistema de doação e
recepção de córneas que amplia o
universo dos que podem usufruir do
transplante, democratiza seu acesso
e, graças ao SUS, transforma todo cidadão em potencial receptor,
honrando outro pioneiro, o oftalmologista russo V. P. Filatov, que instituiu o banco de olhos.
Porém, o Brasil, infelizmente, ainda
não resolveu seu problema nesse
campo. Já demos passos fundamentais, é verdade, e, nos últimos anos,
São Paulo se transformou em um centro importante também quando o tema é transplante de córnea. Foram
criados núcleos de formação de pessoal na USP, na EPM da Unifesp, na
Santa Casa, na Unicamp, na USP de
Ribeirão Preto e em outros locais,
aprimorando o nível dos oftalmologistas e credenciando especialistas.
O ideal seria capacitar profissionais
em todos os Estados e fazer os benefícios do transplante alcançar toda a
população. Os bancos de olhos deveriam atrair principalmente jovens oftalmologistas para essa obra solidária
de fazer um homem voltar a enxergar.
Na mesma linha, uma campanha
deveria estimular as pessoas a doar
suas córneas em vida e a doação do órgão do parente falecido. A doação voluntária aumentou, mas persiste o
medo da doação, o mito da mutilação
e a lenda de pessoas que são caçadas
vivas para delas arrancar os olhos, tirar a córnea e jogar o resto fora. Uma
campanha de esclarecimento poderia
eliminar essas crendices. Assim, talvez se consiga reduzir a fila à metade
e, um dia, chegar ao transplante com
hora marcada, como nos EUA.
Apesar de ser um processo simples,
em razão das características do órgão,
a situação do Brasil, há dez anos, era
vergonhosa: longas e pouco democráticas filas, nas quais o princípio da
igualdade entre os indivíduos nem
sempre era respeitado, combinado
com o mau atendimento, o sofrimento dos receptores e a gritante injustiça
social, que faz do bem-estar moeda de
troca, e de algo fundamental, como o
direito à saúde, barganha política.
A situação só melhorou porque a fila única é bem organizada, fiscalizada
pelo SUS e se pode acompanhar sua
marcha pela internet.
Em janeiro, havia 15.970 pessoas na
lista para transplantes no Brasil, sendo 2.807 em São Paulo, onde, em
2005, eram mais de 5.000. No caso da
córnea, a fila de transplante em São
Paulo, mesmo com o crescimento vegetativo, é metade da de dois anos
atrás. A transparência do sistema é
total e sua eficácia comprova o cumprimento dos valores de eqüidade e
universalidade que os princípios
constitucionais da saúde brasileira
sempre procuraram.
O número de transplantes no Brasil
passou de 4.645, em 2005, para 5.280,
em 2006. Destes, o SUS custeou
56,3%, os convênios, 31%, e os particulares, só 12,7%. Se ainda falta eficiência, São Paulo está no caminho
certo, e as soluções adotadas nos
transplantes de córneas indicam que
a questão é tratada como direito social. A Secretaria da Saúde de São
Paulo estimula a modernização e o
aprimoramento dos bons centros e
sua integração com a sociedade civil,
como o Banco de Olhos de Sorocaba.
Para construir esse modelo, é necessária a compreensão de todos. O
paciente deve conhecer seus direitos
e, com os muitos meios disponíveis,
acompanhar o processo. O médico
deve ter responsabilidade educativa
e, no exercício profissional, cumprir
seu papel de moderador ético. Os financiadores precisam assumir integralmente suas responsabilidades e
admitir que valor verdadeiro é aquele
que agrega resultado à vida. E o governo deve exercer as ações regulatórias,
modernizando sua atuação, atento ao
que é melhor para o paciente.
A saúde em nosso meio tem cura e,
nisso, São Paulo merece o reconhecimento.
CLAUDIO LOTTENBERG, 46, doutor em oftalmologia pela
Escola Paulista de Medicina (atual Unifesp), é presidente
do Hospital Israelita Albert Einstein.
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