São Paulo, quinta-feira, 29 de março de 2007

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Os avanços no transplante de córnea

CLAUDIO LOTTENBERG

Apesar de ser um processo simples, em razão das características do órgão, a situação do Brasil, há dez anos, era vergonhosa

POUCO SE falou de uma grande conquista da medicina: há mais de um século, o austríaco Edward Konrad Zirm realizou o primeiro transplante de córnea, com êxito, de um garoto morto em acidente para um operário adulto que feriu os olhos com soda. Desde então, essa maravilha médica evoluiu muito com novos antibióticos e técnicas de microcirurgia, antiinflamatórios e imunossupressores, conservação da córnea etc.
A córnea, ao contrário dos outros órgãos, não é vascularizada, o que é uma vantagem natural no transplante: facilita a conservação e pode ser retirada do cadáver até seis horas depois do óbito, o que simplifica e barateia o transplante. Além disso, com as técnicas modernas, um mesmo doador resolve doenças diferentes em dois pacientes diferentes.
O Brasil sempre acompanhou essa evolução, enquanto nossos profissionais criaram técnicas -algumas empregadas em outros centros. Além disso, criou um sistema de doação e recepção de córneas que amplia o universo dos que podem usufruir do transplante, democratiza seu acesso e, graças ao SUS, transforma todo cidadão em potencial receptor, honrando outro pioneiro, o oftalmologista russo V. P. Filatov, que instituiu o banco de olhos.
Porém, o Brasil, infelizmente, ainda não resolveu seu problema nesse campo. Já demos passos fundamentais, é verdade, e, nos últimos anos, São Paulo se transformou em um centro importante também quando o tema é transplante de córnea. Foram criados núcleos de formação de pessoal na USP, na EPM da Unifesp, na Santa Casa, na Unicamp, na USP de Ribeirão Preto e em outros locais, aprimorando o nível dos oftalmologistas e credenciando especialistas.
O ideal seria capacitar profissionais em todos os Estados e fazer os benefícios do transplante alcançar toda a população. Os bancos de olhos deveriam atrair principalmente jovens oftalmologistas para essa obra solidária de fazer um homem voltar a enxergar.
Na mesma linha, uma campanha deveria estimular as pessoas a doar suas córneas em vida e a doação do órgão do parente falecido. A doação voluntária aumentou, mas persiste o medo da doação, o mito da mutilação e a lenda de pessoas que são caçadas vivas para delas arrancar os olhos, tirar a córnea e jogar o resto fora. Uma campanha de esclarecimento poderia eliminar essas crendices. Assim, talvez se consiga reduzir a fila à metade e, um dia, chegar ao transplante com hora marcada, como nos EUA.
Apesar de ser um processo simples, em razão das características do órgão, a situação do Brasil, há dez anos, era vergonhosa: longas e pouco democráticas filas, nas quais o princípio da igualdade entre os indivíduos nem sempre era respeitado, combinado com o mau atendimento, o sofrimento dos receptores e a gritante injustiça social, que faz do bem-estar moeda de troca, e de algo fundamental, como o direito à saúde, barganha política.
A situação só melhorou porque a fila única é bem organizada, fiscalizada pelo SUS e se pode acompanhar sua marcha pela internet.
Em janeiro, havia 15.970 pessoas na lista para transplantes no Brasil, sendo 2.807 em São Paulo, onde, em 2005, eram mais de 5.000. No caso da córnea, a fila de transplante em São Paulo, mesmo com o crescimento vegetativo, é metade da de dois anos atrás. A transparência do sistema é total e sua eficácia comprova o cumprimento dos valores de eqüidade e universalidade que os princípios constitucionais da saúde brasileira sempre procuraram.
O número de transplantes no Brasil passou de 4.645, em 2005, para 5.280, em 2006. Destes, o SUS custeou 56,3%, os convênios, 31%, e os particulares, só 12,7%. Se ainda falta eficiência, São Paulo está no caminho certo, e as soluções adotadas nos transplantes de córneas indicam que a questão é tratada como direito social. A Secretaria da Saúde de São Paulo estimula a modernização e o aprimoramento dos bons centros e sua integração com a sociedade civil, como o Banco de Olhos de Sorocaba.
Para construir esse modelo, é necessária a compreensão de todos. O paciente deve conhecer seus direitos e, com os muitos meios disponíveis, acompanhar o processo. O médico deve ter responsabilidade educativa e, no exercício profissional, cumprir seu papel de moderador ético. Os financiadores precisam assumir integralmente suas responsabilidades e admitir que valor verdadeiro é aquele que agrega resultado à vida. E o governo deve exercer as ações regulatórias, modernizando sua atuação, atento ao que é melhor para o paciente.
A saúde em nosso meio tem cura e, nisso, São Paulo merece o reconhecimento.


CLAUDIO LOTTENBERG, 46, doutor em oftalmologia pela Escola Paulista de Medicina (atual Unifesp), é presidente do Hospital Israelita Albert Einstein.

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