São Paulo, domingo, 29 de abril de 2007

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Insegurança jurídica

JOAQUIM FALCÃO

Vou listar cinco subtipos de insegurança jurídica que existem hoje no Brasil e nos países desenvolvidos, em maior ou menor grau

NUM MUNDO cada dia mais volátil, é razoável que investidores nacionais e estrangeiros queiram se proteger das intempéries econômicas ou políticas. Daí a pressão maior, sobretudo de agências internacionais, para que o sistema jurídico nacional assegure previsibilidade no cumprimento dos contratos.
Garanta que governos, juízes e os próprios agentes privados se comportem desta, e não daquela forma. Façam do amanhã, hoje.
No presente inseguro, garantir futuro seguro -uma difícil tarefa das normas jurídicas. Sobretudo se considerarmos que insegurança jurídica é gênero com inúmeras espécies. Vou listar pelo menos cinco subtipos de insegurança jurídica existentes hoje no Brasil e também nos países desenvolvidos, em maior ou menor grau.
No âmbito do Judiciário, o tipo mais grave é a insegurança administrativa. Decorre da incapacidade de a parte prever quando obterá a decisão definitiva, tornando impossível calcular com precisão o custo da demanda. Essa lentidão judicial tem duas causas principais: a cultura do recurso e o atraso gerencial. Nenhuma das duas se combate com resolução do Conselho Nacional de Justiça ou com nova lei do Congresso. Mas podem desaparecer se o Poder Executivo der o exemplo de não recorrer a qualquer preço. E se os juízes se modernizarem gerencialmente.
O segundo subtipo decorre da inefetividade da decisão judicial. O juiz decide, mas as decisões não são cumpridas. Precatórios e execução criminal são exemplos paradigmáticos. Pense no investidor que, ao fazer seus cálculos, percebe que o governo não lhe pagará o que a Justiça determinou como seu direito. Ou na vítima que, ao apresentar queixa, percebe que o criminoso provavelmente não ficará preso, mesmo julgado e condenado.
A terceira insegurança decorre da imprevisibilidade interpretativa. Da impossibilidade de prever como o juiz decidirá. Embora compreenda sua importância para os investidores, considero esse subtipo natural. Por dois motivos. Primeiro, porque uma imprevisibilidade judicial básica existe em qualquer país. Nos Estados Unidos, por exemplo, só existe uma certeza: a de que a Suprema Corte pode mudar de opinião. Segundo, porque até agora não se comprovou empiricamente o fantasma ideológico de que os juízes favorecem os devedores.
O quarto subtipo se situa fora do Judiciário e decorre da inflação normativa. Da incapacidade de uma empresa ou de um cidadão comum cumprirem todas as normas estatais que pretendem regulamentar sua vida.
Essa proliferação torna todos inseguros. Recentemente, a revista "Veja" informou que o país produz 56 normas tributárias por dia. Segundo o jornal "Valor Econômico", mesmo depois de uma limpeza de 124.030 atos normativos no âmbito federal, existiriam ainda 57.288 normas -o suficiente para provocar incerteza legislativa. É estatisticamente impossível estar em dia com tantas normas.
Para combater a ilegalidade potencial da cidadania, deveríamos seguir Bauhaus: menos é mais. Menos leis é mais legalidade. Mais segurança. Finalmente, o quinto subtipo é a insegurança contratual. Decorre da própria natureza do contrato. Para existir, um contrato pressupõe interesses que podem ser -mas não necessariamente são- iguais. A diferença e a divergência são da essência do contrato, que representa apenas um acordo provisório de pretensões eternas. Nesse acordo são embutidas diferenças, que um dia podem aflorar ou não. Basta analisarmos o processo decisório de um contrato: concedo aqui, mas ganho ali. Adio uma definição. Deixo esta cláusula imprecisa, pois, se a especificar, a outra parte discordará.
Contratos tendem a ser incompletos em vários aspectos. Cláusulas potencialmente contraditórias convivem durante sua execução. Não é um acordo unívoco. É só a arena dos significados jurídicos, ética e economicamente recônditos, diferentes e diferidos.
É razoável que a ambição humana queira moldar o futuro, assegurar que o amanhã seja como o queremos hoje.
O progresso civilizatório pode ser medido por nossa capacidade de prever e evitar o amanhã incerto: a catástrofe, o tsunami, a falência, a doença, a morte, enfim. A segurança jurídica faz parte dessa ambição. Mas insegurança jurídica não é mera questão de interpretação contratual, nem devemos debitá-la prioritariamente ao Poder Judiciário e a seus profissionais. Ao sistema jurídico, enfim. O sistema econômico não deve exigir muito do sistema jurídico. Que pode muito, é verdade. Mas não tanto.


JOAQUIM FALCÃO, 63, mestre em direito pela Universidade Harvard (EUA) e doutor em educação pela Universidade de Genebra (Suíça), é professor de direito constitucional e diretor da Escola de Direito da FGV-RJ e membro do Conselho Nacional de Justiça.

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