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Insegurança jurídica
JOAQUIM FALCÃO
Vou listar cinco subtipos de insegurança jurídica que existem hoje no Brasil e nos países desenvolvidos, em maior ou menor grau
NUM MUNDO cada dia mais volátil, é razoável que investidores nacionais e estrangeiros
queiram se proteger das intempéries
econômicas ou políticas. Daí a pressão maior, sobretudo de agências internacionais, para que o sistema jurídico nacional assegure previsibilidade no cumprimento dos contratos.
Garanta que governos, juízes e os próprios agentes privados se comportem
desta, e não daquela forma. Façam do
amanhã, hoje.
No presente inseguro, garantir futuro seguro -uma difícil tarefa das
normas jurídicas. Sobretudo se considerarmos que insegurança jurídica é
gênero com inúmeras espécies. Vou
listar pelo menos cinco subtipos de
insegurança jurídica existentes hoje
no Brasil e também nos países desenvolvidos, em maior ou menor grau.
No âmbito do Judiciário, o tipo
mais grave é a insegurança administrativa. Decorre da incapacidade de a
parte prever quando obterá a decisão
definitiva, tornando impossível calcular com precisão o custo da demanda. Essa lentidão judicial tem duas
causas principais: a cultura do recurso e o atraso gerencial. Nenhuma das
duas se combate com resolução do
Conselho Nacional de Justiça ou com
nova lei do Congresso. Mas podem
desaparecer se o Poder Executivo der
o exemplo de não recorrer a qualquer
preço. E se os juízes se modernizarem
gerencialmente.
O segundo subtipo decorre da inefetividade da decisão judicial. O juiz
decide, mas as decisões não são cumpridas. Precatórios e execução criminal são exemplos paradigmáticos.
Pense no investidor que, ao fazer seus
cálculos, percebe que o governo não
lhe pagará o que a Justiça determinou
como seu direito. Ou na vítima que, ao
apresentar queixa, percebe que o criminoso provavelmente não ficará
preso, mesmo julgado e condenado.
A terceira insegurança decorre da
imprevisibilidade interpretativa. Da
impossibilidade de prever como o juiz
decidirá. Embora compreenda sua
importância para os investidores,
considero esse subtipo natural. Por
dois motivos. Primeiro, porque uma
imprevisibilidade judicial básica existe em qualquer país. Nos Estados Unidos, por exemplo, só existe uma certeza: a de que a Suprema Corte pode
mudar de opinião. Segundo, porque
até agora não se comprovou empiricamente o fantasma ideológico de
que os juízes favorecem os devedores.
O quarto subtipo se situa fora do
Judiciário e decorre da inflação normativa. Da incapacidade de uma empresa ou de um cidadão comum cumprirem todas as normas estatais que
pretendem regulamentar sua vida.
Essa proliferação torna todos inseguros. Recentemente, a revista "Veja"
informou que o país produz 56 normas tributárias por dia. Segundo o
jornal "Valor Econômico", mesmo
depois de uma limpeza de 124.030
atos normativos no âmbito federal,
existiriam ainda 57.288 normas -o
suficiente para provocar incerteza legislativa. É estatisticamente impossível estar em dia com tantas normas.
Para combater a ilegalidade potencial
da cidadania, deveríamos seguir Bauhaus: menos é mais. Menos leis é mais
legalidade. Mais segurança.
Finalmente, o quinto subtipo é a insegurança contratual. Decorre da
própria natureza do contrato. Para
existir, um contrato pressupõe interesses que podem ser -mas não necessariamente são- iguais. A diferença e a divergência são da essência do
contrato, que representa apenas um
acordo provisório de pretensões eternas. Nesse acordo são embutidas diferenças, que um dia podem aflorar ou
não. Basta analisarmos o processo decisório de um contrato: concedo aqui,
mas ganho ali. Adio uma definição.
Deixo esta cláusula imprecisa, pois, se
a especificar, a outra parte discordará.
Contratos tendem a ser incompletos
em vários aspectos. Cláusulas potencialmente contraditórias convivem
durante sua execução. Não é um acordo unívoco. É só a arena dos significados jurídicos, ética e economicamente recônditos, diferentes e diferidos.
É razoável que a ambição humana
queira moldar o futuro, assegurar que
o amanhã seja como o queremos hoje.
O progresso civilizatório pode ser medido por nossa capacidade de prever e
evitar o amanhã incerto: a catástrofe,
o tsunami, a falência, a doença, a morte, enfim. A segurança jurídica faz
parte dessa ambição. Mas insegurança jurídica não é mera questão de interpretação contratual, nem devemos
debitá-la prioritariamente ao Poder
Judiciário e a seus profissionais. Ao
sistema jurídico, enfim. O sistema
econômico não deve exigir muito do
sistema jurídico. Que pode muito, é
verdade. Mas não tanto.
JOAQUIM FALCÃO, 63, mestre em direito pela Universidade Harvard (EUA) e doutor em educação pela Universidade de Genebra (Suíça), é professor de direito constitucional e diretor da Escola de Direito da FGV-RJ e membro do Conselho Nacional de Justiça.
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br
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