São Paulo, sábado, 29 de maio de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

A política externa do governo Lula é melhor do que a do governo FHC?

SIM

Política internacional

RICARDO SEITENFUS

A superioridade do desempenho externo do governo Lula reside no fato de que o Brasil possui atualmente uma política internacional, e não somente uma política externa. Enquanto esta é conseqüência da própria existência do Estado, que o obriga a manter relações exteriores, aquela decorre da aliança entre a capacidade de agir e a vontade política de o fazer.
O extraordinário ativismo na seara externa demonstrado pelo governo Lula decorre de uma percepção diferenciada dos desafios internacionais do Brasil. Nossa posição sempre foi marcada, ao longo da história, por um elevado grau de conservadorismo e de satisfação com o sistema internacional. Essa posição funda-se na idéia de que uma eventual contestação do sistema traria riscos excessivos, se comparados às eventuais vantagens de que desfruta o imenso (mas frágil) Brasil. A cautela e o receio que caracterizaram a política externa de FHC não destoaram do passado, representando uma marcante continuidade.
Ora, a ascensão das forças que conduziram Lula ao Planalto traz consigo uma verdadeira alternância de poder. Ainda que as mudanças internas tardem a ocorrer, na seara externa há transformações incontestes e elas conduzem a nossa diplomacia a patamares raramente alcançados em nossa história.
Sustentada numa percepção inovadora do sistema internacional, a atual política externa demonstra um ativismo coerente, que, sem descurar de nossas relações tradicionais -ademais desprovido de um espírito de enfrentamento desgastante porque demagógico-, mantém altos níveis de cooperação com EUA, União Européia e Japão.
Contudo a nova política externa abre o leque em direção aos países do Sul, especialmente aos Estados emergentes. A formação do Grupo dos 20, sob nossa liderança, faz surgir um novo pólo de poder. Não se trata, como ocorreu com o Movimento dos Países Não-Alinhados, das décadas de 1960 e 70, de uma contestação ideológica da ordem estabelecida. A estratégia é a de reunir forças para vencer as barreiras que impedem o acesso de nossos produtos aos mercados dos países industrializados e lançar as bases para o incremento das relações econômicas, científicas e culturais, numa inédita cooperação Sul/Sul. Inserem-se nesse contexto as promissoras perspectivas abertas pela recente viagem à China.
A percepção do surgimento de novos atores das relações internacionais conduziu o presidente Lula ao Fórum Social Mundial, de Porto Alegre, e ao Fórum Econômico Mundial, de Davos. Abandonando a duplicidade e a ambigüidade de linguagem, características de uma certa diplomacia, o presidente fez discursos semelhantes, embora para platéias tão díspares. Sua extraordinária acolhida conduziu o chefe de Estado ao seleto grupo de personalidades mais importantes da atualidade.
No entorno imediato da América do Sul, registre-se que, contrariamente à administração anterior, que apoiou o autogolpe do corrupto Fujimori no Peru, a atual diplomacia esforçou-se por mediar uma solução pacífica e constitucional para a crise venezuelana.
Quanto ao Mercosul, embora reconhecendo que a resistência à hegemonia unipolar nas Américas dependa da consolidação do projeto integracionista, o Brasil ainda peca pelo débil grau de institucionalização do processo e por sua escassa permeabilidade em relação ao setor privado e à sociedade civil. Há um imenso divórcio entre o novo discurso oficial sobre a integração e a real dinâmica do bloco, cuja precariedade técnica segue inquietante e perigosa, o que pode comprometer a credibilidade do governo e do próprio processo.
Finalmente, os deslocamentos ao exterior do presidente Lula conservam um nítido caráter de interesse público. Como é possível entender que, apesar de uma centena de viagens internacionais feitas pelo presidente Fernando Henrique, ele jamais se tenha deslocado a um Estado árabe ou tenha negligenciado os países do Sul?
Todas essas modificações demonstram que o atual governo tenta alterar, sem bravatas e personalismos, uma ordem internacional que privilegia o unilateralismo político e a exclusão socioeconômica de três quartas partes da humanidade. O povo brasileiro encontra, na atual gestão, os fundamentos dos verdadeiros interesses nacionais, inspirando a crença de que a política internacional promete ser um dos grandes feitos do governo Lula.


Ricardo Antônio Silva Seitenfus, 56, é professor titular de direito internacional público e de organizações internacionais na Universidade Federal de Santa Maria (RS) e diretor da Faculdade de Direito de Santa Maria. É autor de "Relações Internacionais" e "Legislação Internacional" (editora Manole).


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