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TENDÊNCIAS/DEBATES
A política externa do governo Lula é melhor do que a do governo FHC?
SIM
Política internacional
RICARDO SEITENFUS
A superioridade do desempenho externo do governo Lula reside no fato de que o Brasil possui atualmente uma política internacional, e não
somente uma política externa. Enquanto esta é conseqüência da própria existência do Estado, que o obriga a manter
relações exteriores, aquela decorre da
aliança entre a capacidade de agir e a
vontade política de o fazer.
O extraordinário ativismo na seara
externa demonstrado pelo governo Lula decorre de uma percepção diferenciada dos desafios internacionais do Brasil.
Nossa posição sempre foi marcada, ao
longo da história, por um elevado grau
de conservadorismo e de satisfação com
o sistema internacional. Essa posição
funda-se na idéia de que uma eventual
contestação do sistema traria riscos excessivos, se comparados às eventuais
vantagens de que desfruta o imenso
(mas frágil) Brasil. A cautela e o receio
que caracterizaram a política externa de
FHC não destoaram do passado, representando uma marcante continuidade.
Ora, a ascensão das forças que conduziram Lula ao Planalto traz consigo uma
verdadeira alternância de poder. Ainda
que as mudanças internas tardem a
ocorrer, na seara externa há transformações incontestes e elas conduzem a
nossa diplomacia a patamares raramente alcançados em nossa história.
Sustentada numa percepção inovadora do sistema internacional, a atual política externa demonstra um ativismo
coerente, que, sem descurar de nossas
relações tradicionais -ademais desprovido de um espírito de enfrentamento desgastante porque demagógico-, mantém altos níveis de cooperação com EUA, União Européia e Japão.
Contudo a nova política externa abre
o leque em direção aos países do Sul, especialmente aos Estados emergentes. A
formação do Grupo dos 20, sob nossa liderança, faz surgir um novo pólo de poder. Não se trata, como ocorreu com o
Movimento dos Países Não-Alinhados,
das décadas de 1960 e 70, de uma contestação ideológica da ordem estabelecida. A estratégia é a de reunir forças para vencer as barreiras que impedem o
acesso de nossos produtos aos mercados dos países industrializados e lançar
as bases para o incremento das relações
econômicas, científicas e culturais, numa inédita cooperação Sul/Sul. Inserem-se nesse contexto as promissoras
perspectivas abertas pela recente viagem à China.
A percepção do surgimento de novos
atores das relações internacionais conduziu o presidente Lula ao Fórum Social Mundial, de Porto Alegre, e ao Fórum Econômico Mundial, de Davos.
Abandonando a duplicidade e a ambigüidade de linguagem, características
de uma certa diplomacia, o presidente
fez discursos semelhantes, embora para
platéias tão díspares. Sua extraordinária
acolhida conduziu o chefe de Estado ao
seleto grupo de personalidades mais
importantes da atualidade.
No entorno imediato da América do
Sul, registre-se que, contrariamente à
administração anterior, que apoiou o
autogolpe do corrupto Fujimori no Peru, a atual diplomacia esforçou-se por
mediar uma solução pacífica e constitucional para a crise venezuelana.
Quanto ao Mercosul, embora reconhecendo que a resistência à hegemonia unipolar nas Américas dependa da
consolidação do projeto integracionista, o Brasil ainda peca pelo débil grau de
institucionalização do processo e por
sua escassa permeabilidade em relação
ao setor privado e à sociedade civil. Há
um imenso divórcio entre o novo discurso oficial sobre a integração e a real
dinâmica do bloco, cuja precariedade
técnica segue inquietante e perigosa, o
que pode comprometer a credibilidade
do governo e do próprio processo.
Finalmente, os deslocamentos ao exterior do presidente Lula conservam
um nítido caráter de interesse público.
Como é possível entender que, apesar
de uma centena de viagens internacionais feitas pelo presidente Fernando
Henrique, ele jamais se tenha deslocado
a um Estado árabe ou tenha negligenciado os países do Sul?
Todas essas modificações demonstram que o atual governo tenta alterar,
sem bravatas e personalismos, uma ordem internacional que privilegia o unilateralismo político e a exclusão socioeconômica de três quartas partes da humanidade. O povo brasileiro encontra,
na atual gestão, os fundamentos dos
verdadeiros interesses nacionais, inspirando a crença de que a política internacional promete ser um dos grandes feitos do governo Lula.
Ricardo Antônio Silva Seitenfus, 56, é professor titular de direito internacional público e de
organizações internacionais na Universidade Federal de Santa Maria (RS) e diretor da Faculdade
de Direito de Santa Maria. É autor de "Relações
Internacionais" e "Legislação Internacional" (editora Manole).
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