São Paulo, terça-feira, 29 de maio de 2007

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TENDÊNCIAS/DEBATES

A ciência ou o lixo

LUÍS ROBERTO BARROSO


Jogar o embrião fora, em lugar de permitir que ele sirva à causa da humanidade, é uma escolha de difícil sustentação ética


"A MAIOR solidão é a do homem encerrado em si mesmo, no absoluto de si mesmo." Esse verso de Vinicius de Moraes me veio à mente quando o ministro Carlos Ayres Britto, do Supremo Tribunal Federal, determinou a realização de uma audiência pública para debater a legitimidade das pesquisas com células-tronco embrionárias.
Pela primeira vez, o Judiciário fazia uma abertura formal para a sociedade civil, permitindo sua participação no processo de formação do convencimento dos ministros acerca de um tema controvertido e delicado. O precedente merece ser celebrado.
A questão em debate é a seguinte. O ex-procurador-geral da República ingressou com uma ação de inconstitucionalidade contra a Lei de Biossegurança, aprovada em 2005, que permite a utilização, em pesquisas científicas, de embriões inviáveis ou congelados há mais de três anos. Tais embriões são resultantes dos procedimentos de fertilização in vitro, método de reprodução assistida destinado a superar a infertilidade conjugal.
As células-tronco embrionárias são extremamente promissoras para a investigação médica devido a sua capacidade de se transformar em todos os tecidos do organismo humano. A audiência pública produziu algumas conclusões muito nítidas.
Em primeiro lugar, a de que não existe consenso no meio científico acerca do início da vida humana.
O momento exato em que um aglomerado de células se transforma em um ser moral divide as opiniões de cientistas e filósofos em todo o mundo, e a resposta a essa questão sempre estará sujeita à crença subjetiva ou religiosa de cada um. De qualquer forma, é possível afirmar, categoricamente, que, no estágio atual da ciência reprodutiva, a implantação do embrião produzido in vitro no útero materno é condição indispensável para seu desenvolvimento regular.
Não por outra razão, a pergunta certa a ser feita na ação judicial perante o Supremo Tribunal Federal não é acerca do momento em que tem início a vida, mas outra, bem diversa: qual o destino a ser dado aos embriões excedentes do processo de fertilização in vitro, legalmente praticado no Brasil, e que não foram implantados em um útero materno?
Por qual fundamento alguém haveria de optar por deixá-los indefinidamente congelados ou descartá-los em lugar de permitir que eles sirvam ao fim digno de contribuir para a ciência e para a superação do sofrimento de inúmeras pessoas, estas, sim, inequivocamente seres vivos?
Deve-se assinalar que todos os pesquisadores que efetivamente atuam nessa área concordam que a utilização de células-tronco adultas não é capaz de proporcionar tratamento adequado para diversas doenças. Por essa razão, as pesquisas com células-tronco embrionárias seguem sendo o melhor caminho disponível na busca de cura para doenças graves e que causam grande sofrimento, como distrofias musculares, lesões medulares (paraplegia e tetraplegia), diabetes e mal de Parkinson, entre outras.
Há um último argumento institucionalmente importante em favor da manutenção da lei.
É que, por maioria expressiva, o Congresso Nacional se manifestou sobre o tema, permitindo as pesquisas, mas tomando a cautela de proibir práticas eticamente condenáveis, como a comercialização de embriões e a clonagem. Mais que isso: a lei exige, para a utilização dos embriões em pesquisas, que os genitores, isto é, os doadores do sêmen e do óvulo fecundados, autorizem essa prática.
Portanto, em um tema que envolve o que em filosofia se denomina desacordo moral razoável (pessoas bem intencionadas e esclarecidas professam convicções totalmente opostas), o legislador tomou a decisão correta: a de permitir que cada um viva a sua autonomia da vontade, a sua própria crença. Não há razão para o Supremo Tribunal Federal desautorizar a decisão do Congresso Nacional, que é razoável e equilibrada.
Jogar o embrião fora, em lugar de permitir que ele sirva à causa da humanidade, é uma escolha de difícil sustentação ética. Uma escolha auto-referente, que não leva em conta o outro, o próximo, o que precisa.
No mesmo verso de Vinicius, agora completo: "A maior solidão é a do homem encerrado em si mesmo, no absoluto de si mesmo, o que não dá a quem pede o que ele pode dar de amor, de amizade, de socorro".

LUÍS ROBERTO BARROSO , 49, é professor titular de direito constitucional da UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) e advogado do Movitae - Movimento em Prol da Vida, sociedade sem fins lucrativos que defende no STF as pesquisas com células-tronco embrionárias.

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