São Paulo, terça-feira, 29 de maio de 2007

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A quatragem política brasileira

JOSÉ ELI DA VEIGA


Para que a ideologia venha a contar no sistema partidário brasileiro, será necessário esperar que a sociedade se canse da atual dança


QUASE TODAS as interpretações da conjuntura nacional concordam que "a ideologia há muito deixou de contar no sistema partidário -com a eventual exceção do PT e do ex-PFL". Será que poderia ser diferente? Afinal, em nossa época, só surgiram de fato duas ideologias políticas democráticas: a liberal e a socialista. A primeira supunha que o capitalismo "selvagem" se civilizaria se tudo ficasse mais livre, inclusive as movimentações de capitais, de trabalho e das resultantes mercadorias. E a segunda pretendia a superação do capitalismo por achá-lo incompatível com o ideal de igualdade, tão importante quanto o de liberdade.
O problema é que o processo de democratização das sociedades que mais se desenvolveram mostrou o quanto é pueril essa cara e coroa ideológica que emergiu no século 19.
No punhado de países que compõem o capitalismo mais avançado, pululam barreiras protecionistas que impedem a entrada de muitos tipos de mercadoria e trabalhadores e até de alguns tipos de capital. Por outro lado, experiências de engenharia social como a soviética e a chinesa deixaram claro que a superação do capitalismo será algo muito mais complexo e distante do que puderam sonhar todos os cérebros socialistas, inclusive os que se quiseram científicos.
Nos 30 países mais desenvolvidos, existe um número de variantes de capitalismo equivalente ao número de espécies que podem ser encontradas em qualquer amostra aleatória composta por 30 mamíferos.
Pode-se no máximo recorrer a tipologias. Uma delas apresenta cinco tipos, mas apela para critérios geográficos que diferenciariam os sistemas "mediterrânico" e "asiático" dos três fundamentais, forjados por dinâmicas políticas semelhantes.
O primeiro reúne as democracias que construíram parte de suas instituições sob inspiração liberal, apesar de imensas dificuldades objetivas, tendo por arquétipos básicos os EUA, o Canadá e a Austrália. Outra ponta do trio foi ocupada por democracias profundamente marcadas por corporativismo e estatismo, como são os casos da Alemanha, da Áustria, da França e da Itália, para citar apenas os principais casos europeus. E, no caminho do meio, se embrenharam tão-somente as cinco nações escandinavas, o núcleo que melhor conseguiu mesclar o que havia de bom nas ideologias liberal e socialista.
Diante de tal panorama, como é que a ideologia poderia contar no sistema partidário brasileiro neste início de século 21?
Afastadas as ilusões sobre a viabilidade das duas grandes ideologias políticas democráticas, o máximo que os atuais dirigentes partidários podem conseguir é alguma forma de casamento das idiossincrasias determinadas por suas origens com fortes emulações de algum partido nacional (ou corrente internacional) que exerça significativa influência nas democracias mais avançadas.
Não é coincidência, portanto, que essa segunda tese mencione PT e ex-PFL como eventuais exceções. O primeiro tende a ficar cada vez mais parecido com o que foram os partidos social-democratas escandinavos nos anos 1930. E o segundo está fazendo de tudo para se identificar com partidos liberais norte-americanos.
Enquanto isso, os demais grandes partidos brasileiros enfrentam sérias dificuldades para definir suas simpatias. O PSDB está feito cachorro em dia de mudança desde que se deu conta de que o PT havia dominado o pedaço reservado à social-democracia.
Tudo indica que o PMDB viria a se identificar com a democracia de corte corporativista e estatal, caso procurasse uma definição programática.
E os demais partidos -por mais respeitáveis que possam ser- dificilmente poderão deixar de ser candidatos a meteoro ou pequenos satélites em alguma das órbitas dessa quatragem, uma das mais pitorescas danças brasileiras. "Vistosa e variegada", na descrição do romancista da abolição Bernardo Guimarães. "Sem ter o desgarre e a desenvoltura do batuque brutal, não é também arrastada e enfadonha como a quadrilha de salão; ora salta e brinca estrepitosa e alegre, ora se requebra em mórbidas e compassadas evoluções."
Para que a ideologia venha a contar no sistema partidário brasileiro, será necessário esperar que a sociedade se canse dessa dança e passe a pressionar por uma real convergência dos social-democratas. Todavia, como não há sinais de que tal cansaço esteja chegando e como os partidos políticos deixaram de ter a capacidade de propor e levar adiante inovações sociais, ainda está longe o dia em que se tornará favorita uma das modalidades mais interessantes da dança contemporânea: o trio.

JOSÉ ELI DA VEIGA , 59, é professor titular do Departamento de Economia da Faculdade de Economia e Administração da USP.
www.zeeli.pro.br

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