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TENDÊNCIAS/DEBATES
Deve-se proibir a candidatura de parlamentares acusados de corrupção?
NÃO
A síndrome do déspota esclarecido
RICARDO PENTEADO
O PARLAMENTAR envolvido em
corrupção não tem direito de
se candidatar a qualquer cargo
eletivo, desde que, é óbvio, já tenha sido condenado por sentença judicial
transitada em julgado. Essa regra,
aliás, está incorporada ao sistema jurídico nacional na lei complementar
nš 64/90, que veda candidaturas nessas circunstâncias.
Difícil é voltar a aceitar que se imponha inelegibilidade ao parlamentar
ou cidadão apenas acusado ou sob
suspeita de envolvimento em atos abjetos de corrupção, sem ter sido ainda
julgado pelo Poder Judiciário. Dessa
regra, felizmente, nos livramos com a
revogação da lei complementar nš 5,
de 1970, editada sob o regime militar
para afastar da política aqueles que
eram cautelarmente acusados por
quem dominava a polícia e os meios
de repressão.
Para quem não tem pesadelos com
a lembrança daquela época, convém
refrescar a memória: eram inelegíveis
os cidadãos meramente denunciados
por crime contra a administração pública, ainda que não tivessem sequer
apresentado defesa em juízo. No
campo político, como é próprio das
ditaduras, a mera acusação equivalia
a inapelável sentença de condenação.
Impressiona que boa parte da sociedade brasileira se veja tentada a
adotar medidas dessa natureza, na
ilusão de que agora seriam produto de
um clamor social, e não da vontade tirânica de um sistema ditatorial. É assustador, porém, que nos vejamos seduzidos a resolver certos problemas
pelo "higiênico" linchamento de determinados elementos que, por razões às vezes episódicas, são julgados
por paixões e circunstâncias da mídia,
sem que tenham tido a chance de
apresentar sua defesa ao Judiciário.
Desde os pecados que justificaram
o castigo do dilúvio, passando pelas
perversidades que causaram a destruição de Sodoma até chegar na dissoluta política do mensalão e nas práticas depravadas dos sanguessugas, é
recorrente o delírio que suplica uma
providência suprema para pôr ordem
na casa e separar os bons dos maus,
num mundo que é branco e preto.
Mas como todo delírio, esse surto
produz muito mais o mal do que o
bem, pois além de estimular a irresponsabilidade dos ingênuos, outorga
um poder de legitimação duvidosa ao
vaticínio dos fuzilamentos morais sumários, uma vez que se tornam irreversíveis depois de consumados.
O equívoco está em considerar que
a ditadura seja produto apenas de um
tirano. Não é, pois também faz parte
dela um sistema jurídico que desrespeita garantias fundamentais como o
direito de defesa e a soberania do voto
no Estado democrático de Direito.
A despeito disso, propostas existem
no sentido de negar diplomação a políticos eleitos mesmo que ainda não
condenados em definitivo, mas contra os quais haveria "provas irrefutáveis de corrupção". Das duas uma: ou
a idéia é ingênua, ou é demagógica,
visto que só se pode dizer irrefutável a
prova discutida no contraditório e na
ampla defesa, e só pode existir condenação quando houver decisão judicial
transitada em julgado. Em suma: não
se faz justiça sem o devido processo
legal e sem decisão definitiva do órgão judicial competente; assim está
escrito na Declaração Universal dos
Direitos Humanos e também no Pacto de São José da Costa Rica.
De resto, reconhecer elegibilidade
ao cidadão meramente suspeito de
corrupção não implica necessariamente elegê-lo. Diferente do que certas pessoas pensam, o povo sabe votar
-e só o eleitor tem direito ao julgamento político, e só o eleitor pode sufragar ou rejeitar um candidato. A pena de inelegibilidade, se mal aplicada,
não castiga só o político. Priva também o eleitor de uma escolha e retira
do Estado de Direito aquele predicado que o qualifica como democrático.
Por último, para aqueles que ainda
crêem que certos políticos buscam
mandatos eletivos para ganhar impunidade, convém lembrar que nosso
sistema constitucional evoluiu ao eliminar a indevida imunidade que impedia que o parlamentar fosse julgado
sem autorização do Poder Legislativo. Mesmo eleito, o acusado de corrupção pode ser processado e julgado,
e, se for condenado, perderá o mandato obtido nas urnas -agora sim, por
uma decisão civilizada, e não como
produto de uma recaída autoritária.
RICARDO PENTEADO, 44, advogado especialista em direito eleitoral, professor da Faculdade de Direito da PUC-SP, é o presidente do IDPE (Instituto de Direito Político Eleitoral) e autor do livro "Manual das Eleições".
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