São Paulo, sábado, 29 de julho de 2006

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

TENDÊNCIAS/DEBATES

Deve-se proibir a candidatura de parlamentares acusados de corrupção?

SIM

Chega de desvios de conduta

MARCUS FAVER

PARECE PACIFICADO entre os constitucionalistas brasileiros que o chamado neoconstitucionalismo, advindo da Europa, ganhou força entre nós a partir da Constituição Cidadã. Hoje, não há dúvidas de que a Carta Magna figura, no dizer de Luis Roberto Barroso, "no centro do sistema jurídico", funcionando "como vetor de interpretação de todas as normas do sistema".
A Constituição tem, na verdade, não só uma superioridade formal na hierarquia das leis mas também uma supremacia material e axiológica. Os princípios ali expressos são normas que consagram determinados valores ou indicam quais os fins públicos que devem ser perseguidos. Ao tratar dos direitos políticos, a Constituição estabelece expressamente, em seu artigo 14, hipóteses de inelegibilidade, ou seja, descreve situações que, uma vez caracterizadas, retiram do cidadão o direito de ser votado.
O parágrafo 9º, com redação dada pela emenda constitucional de revisão, determina: "Lei complementar estabelecerá outros casos de inelegibilidade e os prazos de sua cessação, a fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade para exercício do mandato, considerada a vida pregressa do candidato (...)". Vê-se que o constituinte revisional introduziu, de forma imperativa no referido parágrafo, princípios éticos que entendeu indispensáveis e fundamentais para a elegibilidade de qualquer pessoa: probidade administrativa e moralidade de conduta e vida pregressa.
Não se menciona no novo texto constitucional a ocorrência de infração penal ou qualquer referência ao princípio da presunção de inocência, porque são questões apartadas daquilo que se procurava regulamentar. As expressões em caráter imperativo, de nítido conteúdo ético, introduzidas pelo constituinte revisional não são meras exortações, mas, isto sim, o estabelecimento de princípios normativos compulsórios.
O legislador ordinário, porém, não obedeceu ao comando constitucional, por motivos óbvios, talvez inconfessáveis, e não editou nova lei complementar. Para que os princípios constitucionais estabelecidos fossem aplicados, seria necessária a edição de norma infraconstitucional? Creio que não, pois os princípios de eticidade e de moralidade integram toda a estrutura jurídica do país. Assim, ao recusar o registro de um candidato que não preenche as exigências constitucionais, não estará o órgão judicial criando hipótese nova de inelegibilidade, mas só aplicando princípios inerentes à Constituição.
Para os parlamentares cujas condutas no exercício dos respectivos mandatos foram reprovadas pelo Conselho de Ética da Câmara dos Deputados, a inelegibilidade se apresenta evidente, pois o órgão, após instrução probatória exercitada com todas as garantias constitucionais (ampla defesa, contraditório etc.), reconheceu procedimento incompatível com o decoro parlamentar.
Na hipótese, pouco importa o julgamento político realizado no plenário da Câmara, com voto secreto, pois as deprimentes absolvições não invalidaram o consistente conjunto de provas que podem servir de base tanto para a instauração de ação penal quanto para instruir o processo do registro ou ainda a ação de impugnação do mandato. Não tendo ocorrido qualquer nulidade na colheita das provas, elas permanecem válidas.
Ou seja, as provas consideradas suficientes pelo Conselho de Ética para sugerir a cassação de deputados acusados de corrupção podem ser aproveitadas, ainda que sem o trânsito em julgado judicial, para impedir a candidatura do parlamentar. Mesmo que o deputado tenha sido absolvido pelo plenário da Câmara.
Se assim não for, será mais uma dolorosa decepção para a sociedade brasileira, que deposita em nós, do Judiciário, as suas últimas e acalentadas esperanças de restauração dos padrões éticos do poder público. Cabe ao Judiciário relevante missão política essencial à própria existência do Estado democrático de Direito: afirmar a todo momento a dignidade e a supremacia dos princípios éticos em nossa terra. Mesmo porque, como disse o ministro Marco Aurélio em seu discurso de posse no TSE, "a República não suporta mais tanto desvio de conduta".


MARCUS FAVER, 66, mestre em direito pela PUC-RJ, é desembargador do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro e conselheiro do Conselho Nacional de Justiça. Foi presidente do TJ-RJ e do Tribunal Regional Eleitoral do Rio.

Texto Anterior: TENDÊNCIAS/DEBATES
Ricardo Penteado: A síndrome do déspota esclarecido

Próximo Texto: Painel do Leitor
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.