São Paulo, segunda-feira, 29 de agosto de 2005

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Delação para colaborar com a sociedade

CARLOS FERNANDO DOS SANTOS LIMA


Não se pode admitir como obrigação ética o silêncio entre criminosos. Na verdade, a obrigação é para com a sociedade
Fatos recentes envolvendo o Ministério Público, as Comissões Parlamentares de Inquérito e o instituto da delação premiada foram mote para que setores específicos repercutissem perante a opinião pública, de forma negativa, falsas impressões contra esse procedimento. Sem nenhuma objeção quanto a sua legalidade, uma vez que baseado nas leis nº 9.807/99 e 10.409/ 2002, tais setores se opõem à colaboração premiada por questões de ordem ética, bem como de validade dos depoimentos dela derivados.
Essas críticas, veiculadas em órgãos jornalísticos de prestígio, desinformam a população da natureza da atividade do Ministério Público e, especialmente, do revolucionário papel da colaboração premiada na investigação criminal.
Primeiro ponto a ser superado é o da suposta imoralidade desse acordo, comparado muitas vezes à traição. Amiúde seus detratores equiparam os investigados/réus colaboradores a Judas Iscariotes ou a Joaquim Silvério dos Reis. Trata-se de imagem forte, mas destituída de qualquer razoabilidade. Nenhuma pessoa delatada é Jesus Cristo nem Tiradentes. Não há regra moral na omertà, não se pode admitir como obrigação ética o silêncio entre criminosos. Na verdade, a obrigação é para com a sociedade. O que existe realmente é o dever de colaborar para a elucidação do crime, pois esse é o interesse social.
Em um segundo momento, não há nas palavras de um colaborador senão indícios de crimes a serem investigados. Os depoimentos prestados por colaboradores são caminhos a serem seguidos e confirmados. Devem, assim, ser tratados com o sigilo necessário, comum a toda investigação, e isso por dois bons motivos: o sigilo preserva a prova para diligências a serem realizadas -como no caso de busca e apreensões futuras- e preserva a imagem de pessoas eventualmente implicadas.
É bom lembrar que não se pode confundir o tempo da imprensa e o tempo das investigações promovidas pelas CPIs com o tempo da investigação criminal. Esta, pela gravidade de uma denúncia penal, deve ter por suporte investigações extensas, bem como provas e indícios suficientes para um juízo de admissibilidade da acusação. Não se acusa alguém com o mesmo suporte probatório talvez razoável para uma boa reportagem. É preciso mais.
É assente entre os operadores do direito, conforme a doutrina americana a respeito do instituto correlato que inspirou nossos legisladores, que o simples depoimento de um colaborador é insuficiente para um juízo condenatório. Diria mais, é insuficiente mesmo para uma acusação criminal. Mas ele, secundado de provas independentes e até de indícios sérios e uniformes, pode e deve ser suporte para a acusação e a condenação penais.
Tomem-se por exemplo as investigações criminais sobre as remessas de divisas para o exterior que as forças-tarefa do Ministério Público Federal e da Polícia Federal vêm desenvolvendo no Paraná desde março de 2003. Dessas investigações já resultaram mais de US$ 1 bilhão em lançamentos fiscais, mais de 421 denunciados, alguns doleiros importantes condenados -como Divonsir Catenace e Toninho da Barcelona- e até mesmo outros recentemente presos, como Hélio Laniado, em Praga.
Essas investigações são resultado de anos de um trabalho paciente, muitas vezes mal compreendido, que utiliza todos os instrumentos modernos de investigação, como a interceptação telefônica, a escuta ambiental, a ação controlada e, especialmente, a colaboração premiada, tudo com o controle judicial. E o resultado até agora alcançado é espetacular. Mas muito mais está por vir. Trata-se de um verdadeiro dominó em que as primeiras peças caíram, mas que os reais objetivos ainda estão por serem alcançados.
Cabe aqui uma pergunta: a sociedade encontra-se satisfeita com a prisão de alguns doleiros? É suficiente a desarticulação temporária do mercado de câmbio paralelo? Creio que a resposta seja negativa. É preciso alcançar aqueles que se utilizaram desses serviços. Seja o dono da empresa que quer fugir da tributação, seja -também e principalmente- aqueles que se utilizaram desses meios para a lavagem de dinheiro oriundo da corrupção, verdadeira praga nacional.
O Ministério Público tem prestado serviços relevantes de maneira independente do Poder Executivo e das Comissões Parlamentares de Inquérito. Colaboradores, certamente, pois todos buscam o interesse público, mas com formas de atuação diferenciadas.
Nós, promotores de Justiça ou procuradores da República, não somos protagonistas de nenhum espetáculo. Nossos resultados é que são notícia. Mas somente os resultados. E devemos, certamente, buscar aperfeiçoar institutos investigativos como a colaboração premiada, dentre outros. Mas também buscar o aparelhamento dos órgãos do Estado encarregados nas investigações. Esse é o único caminho para a superação lenta e gradual do calamitoso estado de coisas noticiado diuturnamente.
No mais, caros leitores, desconfiem da real motivação daqueles que se insurgem contra as investigações, e não contra a criminalidade.
Carlos Fernando dos Santos Lima, procurador regional da República na 3ª região, ex-promotor de Justiça do Estado do Paraná, é membro da força-tarefa do Banestado (Banco do Estado do Paraná) desde março de 2003.

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