São Paulo, quinta-feira, 29 de setembro de 2005

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Um novo índice

JOAQUIM FALCÃO

Joseph Stiglitz e Amartya Sen, ambos ganhadores do Prêmio Nobel de Economia, reuniram-se em Nova York com especialistas de todo o mundo para criar um novo índice mundial: o índice de acesso ao conhecimento, batizado em inglês de "A2K". O Brasil foi representado pelo professor Ronaldo Lemos, da Fundação Getulio Vargas. Não é difícil compreender a grande utilidade desse novo índice.


O desafio é criar uma legislação que estimule a criação sem prejudicar o acesso de todos à própria criação


Anualmente, os Estados Unidos produzem um relatório de repercussão mundial sobre pirataria. Nele, os países são classificados por seus esforços de combate à pirataria e por sua legislação de proteção aos direitos de propriedade intelectual. Quanto mais defender o autor, melhor estará o país. Não se trata de relatório comum. Um país que não combate a pirataria nem protege o direito autoral pode sofrer sanções do governo americano, como aconteceu com a Ucrânia. É natural. Os Estados Unidos são os maiores produtores de bens intelectuais do mercado. Querem protegê-los. Querem que seus usuários paguem por essa utilização. O uso é, no fundo, uma relação de consumo. Ao comprar um tênis Nike, além do objeto em si, estou comprando um direito: o de usar um produto daquela marca específica.
Em toda relação de consumo, o produtor invariavelmente se verá em oposição ao consumidor. Aquele defende um direito, este defende outro. É justamente a partir dessa equação que o novo índice se coloca e se faz necessário. Stiglitz, Amartya e milhares de outros economistas começaram a notar uma correlação perversa entre direito de propriedade intelectual, de um lado, e direito do acesso à informação e ao conhecimento, de outro. A hipótese com que trabalham é simples: em vez de estar a favor da produção e da disseminação de conhecimento, o direito de propriedade intelectual, quando radicalizado, limita injustamente o acesso à informação e pode se voltar contra o legítimo direito dos povos ao conhecimento. São dois, entre outros, os indicadores dessa radicalização.
Primeiro, a extensão do prazo legal para que uma obra caia em domínio público. Esse prazo deve ser suficiente para remunerar o produtor por sua criação. Mas qual o limite dessa remuneração? É o que se pergunta. Quando se estende demasiadamente o início do domínio público, privilegia-se o produtor em detrimento do consumidor. O direito de propriedade, em detrimento do direito à informação.
A conceituada e conservadora revista "The Economist" defende que, na economia moderna, um prazo de 14 anos seria mais do que suficiente para bem remunerar o direito de propriedade. O mínimo exigido pela Organização Mundial de Comércio (OMC) é de 50 anos a partir da publicação da obra. No Brasil, essa radicalização é ainda maior. O prazo aqui é de 70 anos, contados a partir da morte do autor. Na prática, o prazo de proteção é quase sempre de mais de cem anos.
Os Estados Unidos acabam de prolongar também esse prazo, desbalanceando ainda mais as relações entre produtor e consumidor. Passou de 70 para 90 anos, graças à chamada Lei Mickey Mouse, pois teria sido criada para favorecer a empresa de Walt Disney. Essa nova lei americana extrapola Mickey e torna mais difícil o acesso à informação literária, musical ou fotográfica de milhões de norte-americanos que, lá também, não podem arcar com os direitos autorais para se informarem. E sem informação não há conhecimento nem educação. Não há século 21.
O segundo indicador dessa radicalização é a diminuição das hipóteses em que se limitam os direitos autorais. No Brasil, por exemplo, a legislação anterior a 1998 permitia a cópia de trechos de livros para fins acadêmicos. Agora, não mais. Estamos na contramão do estímulo à educação. Milhões de estudantes brasileiros estão privados de acesso a informações fundamentais para a sua formação. Em países como França, Itália e Alemanha, uma parcela do preço da cópia feita vai para os autores e editoras. Com isso, todos ganham universidades, que não precisam comprar os livros com preços de varejo, e editoras, que se remuneram pelas cópias feitas.
Nossa Constituição é clara. O direito de propriedade resulta de delicado equilíbrio entre o interesse individual e a função social da propriedade. O direito individual à propriedade intelectual não é absoluto. Tem de ser ponderado com outros direitos. O licenciamento compulsório dos direitos de patente sobre remédios expressa justamente essa ponderação. Até a OMC já reconhece que o direito à saúde de um povo é mais importante do que o direito de propriedade intelectual de uma empresa.
O relatório anual norte-americano sobre pirataria, com base em dados das empresas interessadas, defende o produtor e os países produtores. O novo índice de acesso ao conhecimento, sob a liderança da Universidade Yale e de instituições de países em desenvolvimento, defenderá os países consumidores e o consumidor. O desafio é criar uma legislação que estimule financeiramente a criação sem prejudicar o acesso de todos à própria criação.

Joaquim Falcão, 62, é diretor da Escola de Direito da Fundação Getulio Vargas (RJ) e membro do Conselho Nacional de Justiça.
@ - jfalcao@fgv.br



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