São Paulo, sexta-feira, 29 de outubro de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

A dor a mais

MARCO AURÉLIO MENDES DE FARIAS MELLO

Sou pai de quatro filhos. Todos desejados, acalentados, bem-vindos. Felizmente, nunca deparei com a escolha entre prosseguir ou interromper uma gestação. Se acontecesse de defrontar com tão angustiante situação, deixaria à minha mulher a decisão. É que, em última análise, a mim convulsionariam as dores emocionais e morais do gesto; sobre ela recairiam ainda os sofrimentos físicos e psicológicos de tão radical deliberação, pois é certo que, nesses casos, as repercussões corpóreas e espirituais são mais diretas, profundas e duradouras na mulher. O homem, por mais presente e integrado, acaba assistindo a tudo a certa distância.
Todas essas considerações vêm a propósito do intenso debate que mobiliza o país desde que deferi um pedido de liminar, possibilitando a antecipação terapêutica do parto ou, em outras palavras, a interrupção da gravidez de feto anencéfalo, sem o receio da glosa penal. Assenti sobretudo aos argumentos de que a permanência do feto mostra-se potencialmente perigosa, podendo ocasionar danos à saúde e à vida da gestante. Anuí à lógica irrefutável da conclusão sobre a dor, a angústia e a frustração experimentadas pela mulher grávida ao ver-se compelida a carregar no ventre, durante nove meses, um feto que sabe, com plenitude de certeza, não sobreviverá. Para qualquer pessoa nessa situação, ficar à mercê da permissão do Estado para livrar-se de semelhante sofrimento resulta, para dizer o mínimo, em clara violência às vertentes da dignidade humana -física, moral e psicológica. Não tive como aquiescer à ignomínia de condenar-se a gestante a suportar meses a fio de desespero e impotência, em frontal desrespeito à liberdade e à autonomia da vontade, direitos básicos, imprescindíveis, consagrados em toda sociedade que se afirme democrática.


Não tive como aquiescer à ignomínia de condenar-se a gestante a suportar meses a fio de desespero e impotência


É até possível para alguns passar incólume pela decisão de, mediante simples omissão, escudados pelas lacunas ou obsolescências da legislação, impingir dor e aflição a outrem. Ora, principalmente em caso penoso como o que se põe em discussão, há que se calçar o sapato não com o próprio pé, mas com o pé do outro, de modo a sentir exatamente onde lhe machuca o calo. Para aguçar o termômetro da sensibilidade, é de bom alvitre perguntar a si mesmo, antes de qualquer decisão: e se fosse com a minha filha, minha mulher, minha irmã? Suportaria esses nove meses de tormento, de espera sem esperança?
Ao fim e ao cabo, a pergunta que não quer calar é: quem poderá, efetivamente, dimensionar a dor alheia? Quem poderá condenar outrem por querer, antes de tudo, preservar a si mesmo, colocando à margem outros valores? Por que se deve respeitar os valores de quem tem fé e olvidar as convicções de quem ignora dogmas religiosos ou trajetórias espirituais? Em nome de que deus ou sob a égide de que premissas humanitárias defende-se o direito à efêmera sobrevivência de um em detrimento do risco e do padecimento, sabe-se lá a gravidade das conseqüências, de outro?
No cerne da questão está a dimensão humana que obstaculiza a possibilidade de se coisificar uma pessoa, usando-a como objeto. São muitos e de crucial importância os valores em jogo. A um só tempo, cuida-se do direito à saúde, do direito à liberdade em seu sentido maior, do direito à preservação da autonomia da vontade, da legalidade e, acima de tudo, da dignidade da pessoa humana. Em se tratando da anencefalia, a ciência médica atua com 100% de certeza. Consoante atestam confiáveis dados estatísticos, 50% dos fetos anencéfalos morrem no período intra-uterino. Se porventura a gestação chega a termo, a sobrevida é diminuta, não havendo nenhuma chance de serem afastados os efeitos da deficiência.
Portanto, diante de tais circunstâncias, não há como refutar a assertiva de que prolongar a gestação é infligir à mulher, à respectiva família, danos à integridade moral e psicológica, além dos riscos físicos reconhecidos no âmbito da medicina. Como negar que, nessa hipótese, acaba-se por obrigar a gestante a conviver diuturnamente com a triste realidade e a lembrança ininterrupta de que o feto, dentro de si, nunca poderá se tornar um ser vivo? Se assim é, configura-se situação concreta que foge às restrições relativas ao aborto -que sempre pressupõe a potencialidade da vida. Em suma, a saúde, como definida pela Organização Mundial da Saúde, fica solapada, sob os aspectos físico, mental e social. Daí haver entendido ser mister afastar-se esse distorcido quadro, impedindo-se que se projete no tempo tão esdrúxulo drama.
Logicamente, diante da complexidade das questões envolvidas, da importância dos valores em jogo, é bastante compreensível -e até desejável- que toda a sociedade se manifeste num salutar e profícuo debate de idéias e opiniões -sem cerceamentos ou preconceitos de qualquer espécie. Estamos numa era em que mais do que nunca é preciso exercitar a tolerância e cultivar o respeito pelas manifestações externadas pelos diversos segmentos sociais. Bem sei que a discussão jamais se esgotará, tantos e tão significativos mostram-se os aspectos envolvidos.
De minha parte, serei todo ouvidos. Que, ao final, com respaldo na necessária lógica da razão, com esteio no arcabouço normativo-constitucional, mas sobretudo consideradas as vertentes éticas e humanitárias que se encontram no âmago da questão, chegue a Corte à decisão mais sábia, mais prudente, mais justa, como sempre sói acontecer. Oxalá assim seja mais uma vez.

Marco Aurélio Mendes de Farias Mello, 58, é ministro do Supremo Tribunal Federal, corte que presidiu de 2001 a 2003.


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