São Paulo, sexta-feira, 29 de outubro de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Arte e sociedade

EDEMAR CID FERREIRA

Dostoiévski sustentava que a arte é a mais necessária das necessidades humanas. Mais que o pão, dizia.
A arte é necessária e faz parte da própria criação. Daí a conexão evidente com a invocação sobrenatural, através de uma mágica imposta às primeiras atividades sociais -a caça, a pesca e a coleta de vegetais. A riqueza dessa capacidade instauradora se estende a todos os lados por que se tente entender a arte e seus três elementos: o criador -o artista-, o criado -o objeto de arte-, a testemunha, o observador, os outros -a humanidade.
A arte é compromisso, testemunho da experiência do homem impregnando o homem de solidariedade. A arte é o mais individual dos fenômenos, ao ser gerada por cada artista e ainda por um instante único de cada artista, e o mais coletivo dos fenômenos, ao atingir toda a humanidade, independentemente de qualquer dos infinitos parâmetros de diferenciação do homem: rico ou pobre, velho ou moço, ignorante ou culto, esperto ou bobo, homem ou mulher. Atingir toda a humanidade, mas a cada um de uma maneira particular, instantânea e permanente, nova e repetida, perturbando o coração, perturbando a mente, dominando os sentidos, conquistando os sentimentos.


A cultura é, hoje, fonte de grande fluxo de comércio. Na balança de exportação dos EUA ela é o terceiro item


A arte consegue atravessar o tempo e o espaço, é eterna e universal, mesmo se contraditoriamente efêmera e fugidia. Ela pode existir em objetos únicos e irreproduzíveis, como uma escultura; pode estar em múltiplos meios, como um livro; pode ser interpretada, como uma peça ou uma canção; pode ser tocada como uma jóia ou ser penetrada como uma catedral; pode agir em todos e em cada um dos sentidos; e pode deles não mais depender.
Mais profundamente, a arte é ao mesmo tempo verdade e mentira: verdadeira, já que ela é no objeto criado, já que sua existência é o próprio fenômeno; e falsa, pois ela é uma invenção, uma usurpação da natureza. O fato de ser única deu, desde sempre, um lugar especial à arte. Às vezes inserida no quotidiano, mas nele guardando uma posição distinta, como talismãs, lares, preces, utensílios, jóias; às vezes reservada para ocasiões especiais, do templo à celebração.
Mas foi a própria relação íntima e necessária -um não é sem os outros- entre seus três elementos internos que tornou sempre o artista um diferente, a receber toda a atenção da sociedade. Se a arte é necessária, o artista também é necessário, e a sociedade humana só pode ser compreendida através do artista.
Como apoiar o artista é a questão. Sempre foi fácil para os que produziam o conveniente, sempre foi difícil para os inconvenientes. Destes, no entanto, brota a arte mais duradoura, a mais perturbadora, a mais transformadora. Esse paradoxo se repete, aliás, no interior da própria obra do artista -Leonardo, Rodin ou Michelangelo-, indo do céu ao inferno dos seus patronos, fosse pelo experimentalismo, fosse pelos ícones derrubados.
Desde sempre, nessa avaliação do apoio conveniente, a arte foi também mercadoria e, independentemente de o artista ter ou não participação nisso, a obra de arte foi negociada. Na conjuntura comercial também formou-se um aparato da crítica dirigida. Mais violentamente, o artista e a arte tornaram-se elementos de propaganda dos Estados autoritários, dependentes do serviço do poder, vítimas trágicas.
O Estado democrático precisa trabalhar com outra ótica: o bem-estar da sociedade como um todo. A proteção do artista, a liberdade de expressão e a liberdade de criação -apoio e independência- devem ser mantidas integralmente, como valores inarredáveis; mas isso não dispensa um retrato imparcial da atividade artística, que escolha os artistas mais representativos.
Há que encontrar um intermediário legítimo entre o Estado e o artista. O mais lógico intermediário, por abrigar todas as formas de apreciação e compreensão da arte, é a própria sociedade. Assim, a sociedade deve buscar no Estado meios para proteger os artistas, por intermédio de políticas públicas que permitam o contato entre o artista e o cidadão. Isso não pode, contudo, excluir a iniciativa privada de ter entre seus objetivos a cultura.
A cultura é, hoje, fonte de grande fluxo de comércio. Na balança de exportação dos EUA ela é o terceiro item. No Brasil ela ainda é zero. Para sermos um grande espaço econômico, temos de ser um grande espaço cultural. Nada mais divulgador de um país que a sua cultura. A brasileira é qualitativa e quantitativamente extraordinária. Exportar cultura deve entrar em nossa pauta. É um salto qualitativo. As exposições que acontecem no exterior são formas avançadas de abrir mercados.
Este o caminho moderno, o único que pode gerar a riqueza permanente de uma nação. Permanente, pois a arte é eterna.

Edemar Cid Ferreira, 61, economista, é presidente do conselho da BrasilConnects e do Banco Santos.


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