São Paulo, segunda-feira, 29 de outubro de 2007

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O triste festival de balas

ARNALDO NISKIER


São incontáveis as vezes em que escolas públicas brasileiras precisam cerrar suas portas, como se estivéssemos numa guerra

NAS COMEMORAÇÕES dos 110 anos da Academia Brasileira de Letras, o presidente Lula parecia à vontade e muito feliz. Depois de ler um discurso curto e formal, entregou-se ao prazer do improviso, com todos os seus riscos. Foi extremamente feliz, entendeu onde se encontrava e citou as virtudes do livro para a cultura de um povo.
Deu notícias de que o governo vai distribuir 110 milhões de livros didáticos para o ensino fundamental (alunos carentes) e tocou num ponto nevrálgico da vida brasileira: a ausência de bibliotecas públicas em mais de mil municípios: "Pois ainda no meu período de governo vou acabar com isso. Em cada cidade, não importa a região, haverá pelo menos uma biblioteca pública". É a tarefa maior, em que hoje se empenha a Biblioteca Nacional, segundo a sua diretora-executiva, Célia Portella.
Do lado de cá, os acadêmicos assentiram com o movimento afirmativo de cabeça. É uma velha reivindicação que parece estar a caminho da sua concretização. O fato nos fez recordar a visita feita por uma delegação da Confederação Nacional do Comércio à Colômbia, neste ano, para conhecer os problemas daquela nação.
A partir de um relatório muito bem escrito pelo especialista Ricardo Vélez Rodríguez, tomamos conhecimento da existência das "redes de apoio", que configuram uma política nacional de segurança, de que faz parte o Projeto Nacional de Consciência Cidadã, liderado por um grupo de mulheres. Do cenário faz parte o setor educativo (colégios e escolas públicas e privadas, universidades, instituições técnicas e tecnológicas), além do mundo empresarial.
O tratamento repressivo ao narcoterrorismo e ao latrocínio foi substituído pela autogestão do conflito de tantos anos, com a plena participação das comunidades, construindo um pensamento estratégico de grande efetividade. O controle social dos aspectos que incidem na qualidade de vida permitiu bons resultados, e um item nos chamou particularmente a atenção: o atendimento a grupos vulneráveis, constituídos de jovens, desajustados e ex-combatentes.
Houve, apesar das controvérsias, o fortalecimento da convivência. Segundo Cristina Goldschmidt, que participou da visita do grupo brasileiro, o setor privado foi mobilizado para o processo de reintegração, viabilizando os resultados. Registrou o trabalho permanente de 1.100 empresários vinculados a 54 espaços de ajuste -houve redução dos delitos, inclusive de seqüestro e extorsão, sobretudo em cidades como Bogotá, Medellín, Cartagena, Cali e Antioquia.
Substituiu-se a expressão "esta cidade não é de ninguém" por uma outra, mais positiva, "como vamos?", com maiores aplicações em saúde, educação e integração social (62% a mais do que no governo anterior), com uma particularidade que se transformou no encanto geral: a construção de megabibliotecas em regiões periféricas, antes entregues ao abandono do poder público.
Serão espaços generosos de convívio, educação e cultura, com a oferta diversificada de livros e materiais de apoio. Assim pensa a Colômbia dar uma nova vida à sua população carente. Um bom exemplo para o nosso país, que sofre de problemas semelhantes em suas favelas, hoje espalhadas em número crescente, sobretudo nas regiões metropolitanas.
São incontáveis as vezes em que escolas públicas brasileiras precisam cerrar suas portas, como se estivéssemos numa guerra, para a segurança dos seus alunos, em virtude do festival de balas dessas regiões. Isso não impede que haja vítimas de pouca idade, muitas perdendo a vida, como tem ocorrido com freqüência no Rio.
As chamadas balas perdidas atingem pessoas inocentes, revoltando a população de modo crescente. Se não for uma idéia ingênua, a nossa proposta é no sentido de que se busque uma trégua entre bandidos, milicianos e a polícia. Com a brevidade possível, os recursos do PAC devem chegar às periferias, com propostas de urbanização e outras melhorias. Quem sabe, a partir daí, tais fatos lamentáveis, que marcam a nossa geração, poderão ser coisa do passado.


ARNALDO NISKIER, 71, é membro da Academia Brasileira de Letras, professor de história e filosofia da educação, ex-secretário de Educação do Rio de Janeiro e membro do Instituto Metropolitano de Altos Estudos (Imae).
aniskier@ig.com.br

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