São Paulo, quinta-feira, 29 de outubro de 2009

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Uma mincada é uma mincada...

ROGÉRIO CEZAR DE CERQUEIRA LEITE


Quem ganha com a redução do consumo do álcool? Está, enfim, ficando claro a quem serve o "novo" Ministério do Meio Ambiente

DUAS INICIATIVAS do governo federal surpreenderam a nação nas últimas semanas.
A primeira foi a decisão de limitar a expansão da cana-de-açúcar, impedindo-a de ocupar a Amazônia, o Pantanal, as vizinhanças do alto Paraná, o cerrado, a caatinga etc.
Ora, tudo bem. Vamos ser ecologicamente corretos. Todavia, todo mundo sabe que a expansão da cana-de-açúcar ocorreu em áreas de pastos abandonadas e de culturas agrícolas decadentes. Apenas 2% dessa expansão ocorreu no cerrado e, assim mesmo, em cerrado semidesértico.
A invasão das terras agora protegidas contra a cana foi feita, como todo mundo sabe, principalmente para plantio de soja e criação de bovinos -cujas expansões, ao que parece, continuam sendo bem-vindas nessas áreas sensíveis.
E é bom lembrar que essas penetrações na Amazônia e no cerrado ocorreram décadas antes da expansão da cana-de-açúcar e, portanto, não foram deslocadas devido ao avanço dessa última. Essa história me lembra uma anedota. Manuel vai a Joaquim e lhe diz: "O Joaquim, tua mulher anda te traindo com o francês Pierre e também com Giovanni, o italiano". Enfurecido, Joaquim sai em busca do japonês da quitanda e dá-lhe uma surra.
Questionado por um atônito Manuel, Joaquim explica: "É melhor prevenir do que remediar".
Uma interpretação benevolente é a de que, com isso, estaríamos dando uma satisfação aos ecoidiotas e ecossafados da União Europeia que acusam o Brasil de desmatar a Amazônia para produzir álcool.
Todavia, essa legislação vai ser interpretada como uma confissão de que a cana estaria invadindo essas áreas sensíveis -assim, seriam justificáveis atitudes restritivas de eventuais países compradores.
É, pois, mais provável que tal iniciativa sirva só para adoçar a boca da poderosa bancada ruralista, dominada pela soja e pela pecuária, que, aliás, será beneficiada pela interdição à cana-de-açúcar, pois não terá que disputar terras valorizadas. Uma mincada é uma mincada é uma mincada...
Ainda mais surpreendente foi a segunda ação do Ministério do Meio Ambiente contra o álcool combustível. Foi publicada uma hierarquia em que se ordenavam os carros produzidos no Brasil de acordo com os respectivos graus de contribuição à poluição. Adivinhem quem ganha nessa escala? Os carros flex seriam os mais poluentes, obviamente.
Só que esqueceram de explicar que os principais componentes responsáveis pela poluição emitidos pela combustão da gasolina -o dióxido de carbono e o metano, principais causadores do efeito estufa, além do benzeno e olefinas, agressivos cancerígenos- não constam da análise. Também não foram considerados os óxidos de enxofre. Ou seja, foram excluídos os contaminantes que incidem sobre a gasolina.
Tampouco foi considerado o diesel, que, no Brasil, é entre 50 e 100 vezes mais poluente que o diesel europeu e principal causador de doenças de todas as espécies em nossas cidades mais populosas. E que, além do mais, tem tido a data limite para sua correção protelada "ad infinitum", porque não convém à industria do petróleo.
Se o MMA tivesse alguma preocupação com a saúde do brasileiro urbanizado, deveria se preocupar com o diesel de baixa qualidade ambiental, e não com o álcool. Mas uma mincada é uma mincada é uma mincada...
E que me perdoem os leitores, pois outra historieta me ocorre. "O Joaquim, como é que conseguiste que o júri do concurso de Miss Brasil Ecologia elegesse a Maria Gordita, filha do chefe?", pergunta Manuel. "Ora", responde o outro, "foi muito simples: raspar a perna é antinatural, não é?
Usar perfume, batom etc. também é artificial. Dentes clarinhos, arrumadinhos, são sinal de que houve intervenção estética. Certeza, só nas banguelas. Pele lisa é sinal de botox. Pois bem, quem faz as regras faz o campeão, não é?"
Mas quem tem a ganhar com a consequente redução do consumo do álcool? Os idiotas que acreditarem nessa outra mincada e que forem por acaso bons cidadãos vão mudar do álcool para a gasolina ou, pior ainda, para o diesel envenenado que se vende no Brasil, uma vez que não é mais possível acreditar no gás da Bolívia.
Está, enfim, ficando claro a quem serve o "novo" Ministério do Meio Ambiente, pois quem é beneficiada por essas mincadas senão a indústria do petróleo? Com um MMA como esse, quem precisa das enchentes e dos furacões ao Norte e ao Sul do Brasil?
Uma mincada é uma mincada é uma mincada...


ROGÉRIO CEZAR DE CERQUEIRA LEITE , 78, físico, é professor emérito da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e membro do Conselho Editorial da Folha.

Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br


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