São Paulo, sexta-feira, 30 de janeiro de 2004

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JOSÉ SARNEY

Aos portadores de cálculo renal e ministros

O material usado por Deus para fazer o mundo foi a pedra. E fez pedra de todo material. Quando o homem quis continuar a obra do Criador, valeu-se da pedra e com ela fez maravilhas.
A pedra dá uma noção de perpetuidade, de duração. Assim Cristo disse a são Pedro: "Tu és pedra". E com ela defendeu todos os homens: "Quem nunca pecou atire a primeira pedra".
Foi tão ampla a fórmula de Deus para fazer pedras que deu aos nossos frágeis corpos fabricar pedras. Já me fez produzir pedras de colesterol e urobilina, que me levaram a vesícula. E agora, quando estava com a alma machucada e triste com a perda de minha mãe, fez minha máquina de pedras produzir ditas de ácido úrico, de cálcio e outras que o laboratório ainda não me revelou. Foi então que compreendi o poema do Drummond: "No meio do caminho tinha uma pedra". O caminho era a metáfora do ureter.
E vi que Drummond completava sua inspiração renal quando dizia que Itabira era uma "fotografia", mas "como dói!". A minha pedra me fez conhecer aquilo que falam ser a maior dor do mundo: a do parto, sem direito a cesariana. Percorri, entre esperanças e pajelanças, o caminho de injeções analgésicas, antiinflamatórios, e não recusei os chás caseiros para o mijocárdio, todos os que me prescreviam e que iam desde cabelo de milho, caroço de bacuri e de melancia, raiz de chanana e quebra-pedra até a oração da cabra-preta, reza de passar-pedra.
Nesse flagelo, li as declarações do presidente Lula de que sofria para mexer as pedras do ministério. Quis dar-lhe um consolo, dizendo que por essas dores já passei, mas ele que se prepare, pois vão voltar. Falo de experiência feita. Terá outras vítimas, de guilhotina armada, a dizer-lhe: "Companheiro Lula, querem me intrigar com você e foram me dizer que você vai demitir-me". O presidente tem de olhar e dizer o que Tancredo respondeu uma vez: "Diga que não é verdade, foi você que pediu demissão".
Criou-se no Brasil a cultura de que pedra de demitir ministro é como cálculo renal: dói. Dói mesmo, mas chá de carinho alivia.
Voltando à rota do meu cálculo, engatado, caminhei para São Paulo. A solução que me deram foi, com um cateter, empurrá-lo de volta ao rim, de onde saíra. Em seguida, uma sessão de litotripsia. Quando ouvi o nome, quase desmaiei. Esclareceram-me ser uma coisa simples: bombardear a pedra com uns 5.000 tiros de ultra-som para destruí-la e transformá-la em areia. Não vi nada, três horas anestesiado.
Acontece que a estatística de complicações nesse procedimento é de 1%, e eu caí nesse 1%: fiz um hematoma.
Com minha hipocondria assumida, ouvi os médicos falarem de queda das taxas de hemoglobina, taquicardia, dores abdominais, e aquele friozinho misturava-se com a febre de sonhos de cristais de cálcio, poliedros brilhantes vazando pela minha bexiga.
Tudo passou e, ao agradecer aos médicos, que com sábia humanidade aturaram meus receios, disse-lhes que esperava não dar mais trabalho. "Tudo bem, mas não se esqueça de voltar daqui a dois meses para retirarmos o cateter duplo J que deixamos dentro para desinflamar seu rim e ureter!" Urrah!
Volto ao Drummond: "Nunca me esquecerei desse acontecimento na vida de minhas retinas tão fatigadas, que no meio do caminho tinha uma pedra, tinha uma pedra no meio do caminho."
E não era ministro. Era mesmo de cálcio.


José Sarney escreve às sextas-feiras nesta coluna.


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