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JOSÉ SARNEY
Aos portadores
de cálculo renal
e ministros
O material usado por Deus para
fazer o mundo foi a pedra. E fez
pedra de todo material. Quando o homem quis continuar a obra do Criador, valeu-se da pedra e com ela fez
maravilhas.
A pedra dá uma noção de perpetuidade, de duração. Assim Cristo disse a
são Pedro: "Tu és pedra". E com ela
defendeu todos os homens: "Quem
nunca pecou atire a primeira pedra".
Foi tão ampla a fórmula de Deus para fazer pedras que deu aos nossos frágeis corpos fabricar pedras. Já me fez
produzir pedras de colesterol e urobilina, que me levaram a vesícula. E agora, quando estava com a alma machucada e triste com a perda de minha
mãe, fez minha máquina de pedras
produzir ditas de ácido úrico, de cálcio
e outras que o laboratório ainda não
me revelou. Foi então que compreendi o poema do Drummond: "No meio
do caminho tinha uma pedra". O caminho era a metáfora do ureter.
E vi que Drummond completava
sua inspiração renal quando dizia que
Itabira era uma "fotografia", mas "como dói!". A minha pedra me fez conhecer aquilo que falam ser a maior
dor do mundo: a do parto, sem direito
a cesariana. Percorri, entre esperanças
e pajelanças, o caminho de injeções
analgésicas, antiinflamatórios, e não
recusei os chás caseiros para o mijocárdio, todos os que me prescreviam e
que iam desde cabelo de milho, caroço
de bacuri e de melancia, raiz de chanana e quebra-pedra até a oração da cabra-preta, reza de passar-pedra.
Nesse flagelo, li as declarações do
presidente Lula de que sofria para mexer as pedras do ministério. Quis dar-lhe um consolo, dizendo que por essas
dores já passei, mas ele que se prepare,
pois vão voltar. Falo de experiência
feita. Terá outras vítimas, de guilhotina armada, a dizer-lhe: "Companheiro Lula, querem me intrigar com você
e foram me dizer que você vai demitir-me". O presidente tem de olhar e dizer
o que Tancredo respondeu uma vez:
"Diga que não é verdade, foi você que
pediu demissão".
Criou-se no Brasil a cultura de que
pedra de demitir ministro é como cálculo renal: dói. Dói mesmo, mas chá
de carinho alivia.
Voltando à rota do meu cálculo, engatado, caminhei para São Paulo. A
solução que me deram foi, com um
cateter, empurrá-lo de volta ao rim, de
onde saíra. Em seguida, uma sessão de
litotripsia. Quando ouvi o nome, quase desmaiei. Esclareceram-me ser
uma coisa simples: bombardear a pedra com uns 5.000 tiros de ultra-som
para destruí-la e transformá-la em
areia. Não vi nada, três horas anestesiado.
Acontece que a estatística de complicações nesse procedimento é de 1%,
e eu caí nesse 1%: fiz um hematoma.
Com minha hipocondria assumida,
ouvi os médicos falarem de queda das
taxas de hemoglobina, taquicardia,
dores abdominais, e aquele friozinho
misturava-se com a febre de sonhos
de cristais de cálcio, poliedros brilhantes vazando pela minha bexiga.
Tudo passou e, ao agradecer aos médicos, que com sábia humanidade
aturaram meus receios, disse-lhes que
esperava não dar mais trabalho. "Tudo bem, mas não se esqueça de voltar
daqui a dois meses para retirarmos o
cateter duplo J que deixamos dentro
para desinflamar seu rim e ureter!"
Urrah!
Volto ao Drummond: "Nunca me
esquecerei desse acontecimento na vida de minhas retinas tão fatigadas,
que no meio do caminho tinha uma
pedra, tinha uma pedra no meio do
caminho."
E não era ministro. Era mesmo de
cálcio.
José Sarney escreve às sextas-feiras nesta coluna.
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