São Paulo, sexta-feira, 30 de janeiro de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Ausência de pudor

DENIS LERRER ROSENFIELD

A reforma ministerial mostra que nada mudou, um ano após as mudanças terem sido anunciadas. Por mais que se mexa em ministros, o país permanece o mesmo. Uns entram e outros saem, sem que se perceba claramente a diferença senão nos interesses que foram ou não contemplados. O próprio conceito de mudança perde o sentido, pois, por mais que as pessoas não sejam as mesmas, não se altera nenhuma prática. O governo Lula, também nesse domínio, expõe a continuidade em relação ao governo FHC, com um agravante: criou 2.797 cargos comissionados, de um valor total entre R$ 38 milhões e R$ 58 milhões por ano. O Fome Zero, tão alardeado, poderia ter sido um destinatário desses recursos. Pelo menos o governo anterior teve preocupação com a diminuição do tamanho do Estado, preocupação essa ausente do novo.
A reforma ministerial, visivelmente, não visou à racionalidade administrativa, pois o número de ministérios permaneceu o mesmo, a eficiência burocrática não entrou na ordem do dia (salvo, talvez, na Educação e no Desenvolvimento Social) e houve um novo inchaço do aparelho estatal. O governo continua o mesmo em suas práticas, e o atendimento aos amigos e partidários, a preocupação maior do chefe de Estado. Aparentemente, o presidente teve alguns estados de alma na demissão de companheiros antigos, porém proveu um número expressivo de cargos para os seus companheiros em geral, de modo que o seu partido termine, afinal, bem atendido.


Nessa primeira reforma ministerial do governo Lula, até a psicologia se tornou um problema relevante


O primeiro aspecto que chama a atenção é a ausência de pudor na reforma -a barganha de cargos na aliança com o PMDB foi tão escancarada que ninguém se dava mais ao trabalho de ocultar o fisiologismo em questão ou de mostrar uma correção de comportamento. O PMDB, por seu lado, ofereceu um espetáculo lamentável, desconstituindo-se como alternativa de poder e pondo-se a reboque do PT em troca de cargos. Não se tratou evidentemente de criar uma oposição comprometida com o país, pois, para isso, bastaria uma ação responsável no Congresso. Os projetos de interesse nacional seriam aprovados, enquanto os que o contrariassem seriam rejeitados. A preocupação, no entanto, foi com a "verticalização" na ocupação dos cargos dos ministérios, eufemismo que significa "bons empregos aos amigos". E o Brasil, onde fica?
O PT mostrou que a ética na política não é mais o seu forte. A encenação nem mais se produz. Quando cargos são negociados tão escancaradamente, já não há nem o semblante de uma preocupação moral, pois apoios e cargos são barganhados no melhor estilo brasileiro, que relega o interesse público a um segundo plano. Na verdade, o que termina contando é o interesse privado dos partidos, numa forma particularmente perversa de "neoliberalismo", para usar os conceitos do PT de antanho.
Em nenhum momento entrou em linha de consideração o enxugamento da máquina estatal em nome da racionalidade. O Estado brasileiro tem sido ineficiente do ponto de vista do atendimento das demandas básicas da população, como habitação, saúde e educação, mas permanece uma certa mística de que tem condições de suprir essas demandas. Assim, gasta-se cada vez mais na burocracia e não há uma correspondente melhora no atendimento dessas demandas básicas. O aumento do número de cargos é mais um exemplo de que muito se fará "administrativamente" para que nada aconteça "socialmente". Enquanto o funcionamento do Estado continuar sugando uma parte expressiva das arrecadações fiscal e tributária e nada der em retorno, só teremos o espetáculo midiático das reformas. E esse sim tem sido eficiente!
Nessa primeira reforma ministerial do governo Lula, até a psicologia se tornou um problema relevante, pois o novo presidente teria ficado chateado em fritar e depois rifar assessores próximos e amigos antigos. Alguns teriam ficado amuados, outros chorosos, outros ainda feridos, e o próprio presidente, visivelmente constrangido. As emoções ganharam uma dimensão inusitada, como se a dimensão privada devesse ocupar a pública. Ora, o Estado é um lugar do público, e o país deveria estar acima dessas emoções. Quando ocupará ele o papel central?

Denis Lerrer Rosenfield, 53, doutor pela Universidade de Paris 1, é professor titular de filosofia da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) e editor da revista "Filosofia Política". É autor de "Política e Liberdade em Hegel" (Ática, 1995), entre outros livros.


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