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TENDÊNCIAS/DEBATES
Democracia com povo e sem golpe
CEZAR BRITTO
Nosso projeto fortalece a posição do Congresso ante o presidente da República
e coloca o povo no centro das decisões nacionais
EM ARTIGO publicado nesta Folha ("Tendências/Debates",
21/3) -o segundo em que se
ocupa da proposta de reforma política
encaminhada pela OAB ao Congresso
Nacional-, o eminente cientista político Bolívar Lamounier, cujos méritos acadêmicos reconhecemos, comete ("data venia") algumas impropriedades, possivelmente decorrentes de leitura apressada.
Afirma que em nossa proposta,
concebida sob a orientação do jurista
e professor Fábio Konder Comparato
-e aprovada pela unanimidade do
Conselho Federal da OAB-, o presidente da República tem "a prerrogativa de convocar plebiscitos e referendos sem ouvir o Congresso Nacional".
Ora, é exatamente o contrário.
Em contraste com todos os outros
países que admitem a realização de
referendos e plebiscitos, nosso projeto é o único que NÃO dá ao chefe do
Executivo essa prerrogativa. Muito
pelo contrário. Confere à minoria
qualificada -um terço de qualquer
das Casas do Congresso- a iniciativa
de plebiscitos e referendos.
Isso significa, bem ao contrário do
que sugere a análise, que a proposta
neutraliza o rolo compressor governamental, que em regra se articula
com a maioria parlamentar para barrar iniciativas contrárias a seus interesses. Nosso projeto, portanto, fortalece, sim, a posição política do Congresso perante o presidente da República. Obriga a maioria parlamentar a
levar a sério a posição da minoria.
Nesses termos, consideramos desnecessário desmentir afirmações que
se desdobram a partir desse pressuposto inexistente, como o de que a
proposta descrê "quase totalmente"
na democracia representativa. O
"quase totalmente", inclusive, adquire contornos herméticos: por que o
"quase"? Parece-nos tão inconsistente quanto uma "meia gravidez". Não
há meia descrença: ou se crê ou não se
crê. No nosso caso -e da proposta em
pauta-, não só cremos como prestigiamos a democracia representativa.
O recall, inclusive, objeto de outra
crítica do articulista, visa a resgatar a
dignidade e a respeitabilidade da representação política. Não a suprimi-la ou a enfraquecê-la. Não é invenção
nossa nem consta que, onde é adotado, haja enfraquecimento da representação política. O recall é admitido,
desde o começo do século 20, em 18
unidades da Federação norte-americana: 15 Estados, o Distrito de Colúmbia, a ilha de Guam e as ilhas Virgens.
É curioso que, sendo adepto do parlamentarismo, Bolívar Lamounier
julgue abusivo que pelo recall não só
possa ser revogado o mandato dos
chefes de Executivo e dos senadores
mas também ser dissolvida a Câmara
dos Deputados.
No parlamentarismo, a dissolução
do Parlamento ocorre por decisão solitária do chefe de Estado. No nosso
projeto, patrocinado no Senado por
Eduardo Suplicy (PT-SP) e Pedro Simon (PMDB-RS), a dissolução da Câmara dos Deputados obedece, muito
mais democraticamente, à iniciativa
do próprio povo.
Feitos esses esclarecimentos, parece-nos despropositado o receio de
que as idéias constantes do projeto da
OAB "desemboquem num populismo
autoritário semelhante ao regime bolivariano do coronel Hugo Chávez".
Ao que nos conste, não foi Chávez
quem inventou os instrumentos da
democracia direta, que remontam às
origens da própria democracia -e
que, no Brasil, foram acionados com
êxito diversas vezes no curso da história recente. A Constituição de 1988 os
estabelece, em seu artigo 14.
Em 1962, o povo foi chamado a manifestar-se a respeito do sistema de
governo. A renúncia de Jânio Quadros, um ano antes, havia imposto ao
país um arremedo de parlamentarismo para negar ao vice-presidente
João Goulart, eleito no sistema presidencialista, o direito de governar. Era
uma manobra golpista. Em plebiscito, o povo disse não ao golpe.
Em 1992, por imposição da Constituição de 1988, o povo foi novamente
chamado a optar entre o regime (monárquico ou republicano) e o sistema
(presidencialista ou parlamentarista)
de governo. Optou pela república e
pelo presidencialismo. Há dois anos,
manifestou-se, em referendo, contrário à proposta que proibia o comércio
de armas de fogo no Brasil. Deixou
claro que não confia na eficiência da
segurança que o Estado lhe oferece.
Concorde-se ou não, votou consciente e deu seu recado.
Para que esses instrumentos, que
colocam o povo no centro das decisões nacionais, não sejam pervertidos
em seus propósitos, podem-se acrescentar outras garantias.
Uma delas: excluir de consulta direta as cláusulas pétreas constitucionais, como a república, a federação, a
democracia, a periodicidade dos
mandatos e a ampliação da reeleição.
CEZAR BRITTO, 45, é presidente nacional da OAB (Ordem
dos Advogados do Brasil).
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