São Paulo, sexta-feira, 30 de março de 2007

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O discurso de Lula sobre ciência e tecnologia

RENATO DAGNINO

Sua fala seria uma censura à atitude da comunidade de pesquisa de atribuir a outrem a calamidade social que nos cerca?

O DISCURSO do presidente Lula no Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), em 13 de março, por sugerir uma radical reorientação na política de ciência e tecnologia (C&T) brasileira, é o evento recente mais importante do ambiente de "policy" e de "politics" que a cerca.
É a primeira vez que um governante se refere com tal densidade política a aspectos que, é importante enfatizar, quase nunca são reconhecidos -e, muito menos, mencionados.
Começo pelo simbolismo com que Lula iniciou seu discurso, depois de escutar (com certa impaciência, a julgar pela forma como deixava escorregar entre os dedos um papel dobrado que batia na mesa) o discurso do ministro de Ciência e Tecnologia.
No que interpreto como uma reação ao tom apologético (desculpável, dada a natureza do evento) da apresentação do Programa do Satélite Sino-Brasileiro, Lula disse: "Eu não vou ler [meu] discurso porque é cópia fiel do que o [ministro] Sergio Rezende leu. Certamente, quem fez o meu fez o dele ou ele fez o meu e tirou xerox para facilitar a vida dele".
Com sua aguda ironia bem-humorada (que arrancou risos da sisuda comunidade de pesquisa), ele habilmente anunciou sua idéia-força: não era hora de comemoração, mas de uma autocrítica que, como cidadãos-pesquisadores, cabia aos ali reunidos.
Prosseguiu dizendo: "(...) na medida em que nós não fizemos lições que outros fizeram [alfabetização, reforma agrária, distribuição de renda], nós somos um país dividido entre gente que participa do Brasil de ponta, tecnológico, avançado, como todos vocês participam. Ao mesmo tempo, temos um país onde o estoque de pessoas marginalizadas começa a causar preocupação e incertezas na sociedade". E completou: "O desafio que está colocado para nós, agora, depois de visitar o Inpe, é provar que nós somos capazes de fazer isso".
Lançado àquela platéia, o desafio parece significar que "agora", depois de ter usufruído um tratamento privilegiado -em relação ao plano internacional e em comparação com outros segmentos sociais-, a comunidade de pesquisa deve contribuir, com o conhecimento que a sociedade lhe permitiu adquirir, para "fazer as lições" da "alfabetização, da reforma agrária, da distribuição de renda".
Com a autoridade que a democracia confere ao presidente para orientar políticas de governo, mas que, até agora, nunca havia sido empregada no âmbito da política de C&T, ele seguiu aludindo ao que provavelmente tinha lido no discurso que não fez: "O resultado que temos hoje de coisas extraordinárias que tenho visitado no Brasil é conquista de todos nós. Mas, às vezes, as coisas que não dão certo, carimbamos um responsável, tiramos o corpo fora e fica por conta de alguém que queremos responsabilizar".
Terá sido uma censura à atitude recorrente da comunidade de pesquisa de atribuir a outrem (à ganância das elites, ao "imperialismo", aos políticos corruptos, quando não à "falta de consciência" acerca da importância da C&T que impede que se aloquem mais recursos para a ciência) a calamidade social que nos cerca?
Tentando "tirar o corpo fora", a comunidade de pesquisa não se estaria eximindo da sua parcela de culpa por pesquisar e ensinar um conhecimento cuja finalidade é alavancar um processo de acumulação concentrador e socialmente excludente? Por não reorientar sua pesquisa para os problemas da população? Por não ser capaz de conceber as complexas soluções tecnológicas, científicas e ambientais associadas à duplicação do Brasil necessária para abrigar nossos não-cidadãos de hoje?
Entendo a pergunta de Lula ("Não está na hora de a nossa consciência assumir um compromisso com este país um pouco além da nossa própria sobrevivência enquanto seres humanos e enquanto pesquisadores?") como um chamamento à comunidade de pesquisa de esquerda. Àqueles que, sentados naquela sala, são conscientes de que é necessário mudar, mas seguem iludidos pelos mitos da neutralidade da ciência e do determinismo tecnológico ou não têm ainda coragem de assumir que pertencer ao "main stream" ou figurar no "science citation index" não é suficiente para construir um país decente.
O presidente deu mais um recado: "Durante décadas, o Brasil não combinou as oportunidades que teve de aproveitar o crescimento para permitir que houvesse igualdade de oportunidades no conjunto da sociedade". Seu tom pareceu sinalizar para uma inflexão na política de C&T que abra espaço para o engajamento da comunidade de pesquisa de esquerda na construção de um Brasil mais justo e democrático.


RENATO DAGNINO, 58, mestre em economia do desenvolvimento e doutor em ciências humanas, é professor titular da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e um dos fundadores do Departamento de Política Científica e Tecnológica daquela universidade.

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