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O discurso de Lula sobre ciência e tecnologia
RENATO DAGNINO
Sua fala seria uma censura à atitude da comunidade de pesquisa de atribuir
a outrem a calamidade social que nos cerca?
O DISCURSO do presidente Lula
no Inpe (Instituto Nacional de
Pesquisas Espaciais), em 13 de
março, por sugerir uma radical reorientação na política de ciência e tecnologia (C&T) brasileira, é o evento
recente mais importante do ambiente
de "policy" e de "politics" que a cerca.
É a primeira vez que um governante se refere com tal densidade política
a aspectos que, é importante enfatizar, quase nunca são reconhecidos
-e, muito menos, mencionados.
Começo pelo simbolismo com que
Lula iniciou seu discurso, depois de
escutar (com certa impaciência, a julgar pela forma como deixava escorregar entre os dedos um papel dobrado
que batia na mesa) o discurso do ministro de Ciência e Tecnologia.
No que interpreto como uma reação ao tom apologético (desculpável,
dada a natureza do evento) da apresentação do Programa do Satélite Sino-Brasileiro, Lula disse: "Eu não vou
ler [meu] discurso porque é cópia fiel
do que o [ministro] Sergio Rezende
leu. Certamente, quem fez o meu fez o
dele ou ele fez o meu e tirou xerox para facilitar a vida dele".
Com sua aguda ironia bem-humorada (que arrancou risos da sisuda comunidade de pesquisa), ele habilmente anunciou sua idéia-força: não
era hora de comemoração, mas de
uma autocrítica que, como cidadãos-pesquisadores, cabia aos ali reunidos.
Prosseguiu dizendo: "(...) na medida em que nós não fizemos lições que
outros fizeram [alfabetização, reforma agrária, distribuição de renda],
nós somos um país dividido entre
gente que participa do Brasil de ponta, tecnológico, avançado, como todos
vocês participam. Ao mesmo tempo,
temos um país onde o estoque de pessoas marginalizadas começa a causar
preocupação e incertezas na sociedade". E completou: "O desafio que está
colocado para nós, agora, depois de visitar o Inpe, é provar que nós somos
capazes de fazer isso".
Lançado àquela platéia, o desafio
parece significar que "agora", depois
de ter usufruído um tratamento privilegiado -em relação ao plano internacional e em comparação com outros segmentos sociais-, a comunidade de pesquisa deve contribuir, com o
conhecimento que a sociedade lhe
permitiu adquirir, para "fazer as lições" da "alfabetização, da reforma
agrária, da distribuição de renda".
Com a autoridade que a democracia
confere ao presidente para orientar
políticas de governo, mas que, até
agora, nunca havia sido empregada
no âmbito da política de C&T, ele seguiu aludindo ao que provavelmente
tinha lido no discurso que não fez: "O
resultado que temos hoje de coisas
extraordinárias que tenho visitado no
Brasil é conquista de todos nós. Mas,
às vezes, as coisas que não dão certo,
carimbamos um responsável, tiramos
o corpo fora e fica por conta de alguém que queremos responsabilizar".
Terá sido uma censura à atitude recorrente da comunidade de pesquisa
de atribuir a outrem (à ganância das
elites, ao "imperialismo", aos políticos corruptos, quando não à "falta de
consciência" acerca da importância
da C&T que impede que se aloquem
mais recursos para a ciência) a calamidade social que nos cerca?
Tentando "tirar o corpo fora", a comunidade de pesquisa não se estaria
eximindo da sua parcela de culpa por
pesquisar e ensinar um conhecimento cuja finalidade é alavancar um processo de acumulação concentrador e
socialmente excludente? Por não reorientar sua pesquisa para os problemas da população? Por não ser capaz
de conceber as complexas soluções
tecnológicas, científicas e ambientais
associadas à duplicação do Brasil necessária para abrigar nossos não-cidadãos de hoje?
Entendo a pergunta de Lula ("Não
está na hora de a nossa consciência
assumir um compromisso com este
país um pouco além da nossa própria
sobrevivência enquanto seres humanos e enquanto pesquisadores?") como um chamamento à comunidade
de pesquisa de esquerda. Àqueles que,
sentados naquela sala, são conscientes de que é necessário mudar, mas
seguem iludidos pelos mitos da neutralidade da ciência e do determinismo tecnológico ou não têm ainda coragem de assumir que pertencer ao
"main stream" ou figurar no "science
citation index" não é suficiente para
construir um país decente.
O presidente deu mais um recado:
"Durante décadas, o Brasil não combinou as oportunidades que teve de
aproveitar o crescimento para permitir que houvesse igualdade de oportunidades no conjunto da sociedade".
Seu tom pareceu sinalizar para uma
inflexão na política de C&T que abra
espaço para o engajamento da comunidade de pesquisa de esquerda na
construção de um Brasil mais justo e
democrático.
RENATO DAGNINO, 58, mestre em economia do desenvolvimento e doutor em ciências humanas, é professor titular da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e
um dos fundadores do Departamento de Política Científica e Tecnológica daquela universidade.
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