São Paulo, terça-feira, 30 de abril de 2002

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ROBERTO MANGABEIRA UNGER

Debate já

Não é possível reorientar o rumo do país sem saber para onde. Um conservador não precisa ter idéias. Um progressista convencional, que queira apenas humanizar a ordem existente, necessita de poucas idéias fracas. Quem se proponha, porém, a obra transformadora requer muitas idéias fortes. Engajar um movimento no esforço para desdobrá-las. E fazê-las viver na imaginação coletiva.
Até agora, porém, não conseguimos instaurar a discussão programática no Brasil. As elites do dinheiro e do poder tratam propostas nacionais como ramo da propaganda. A massa popular, desinformada e aflita, é obrigada a recorrer à intuição para penetrar o nevoeiro das palavras e das imagens. A classe média, que seria o reduto do debate nacional, ameaça render-se ao desencanto com a política.
Dois episódios da semana passada mostram o tamanho do desafio. O candidato do PT assustou alguns ao falar em alíquotas de até 50% no Imposto de Renda da Pessoa Física. A imprensa festejou. Não se comentou o erro relevante: os endinheirados têm como se proteger do Imposto de Renda, que funciona como tributo sobre o salário da classe média.
Pouco depois, o candidato oficial afirmou ser "delirante" a proposta de Ciro Gomes de fazer com que o peso maior da tributação incida sobre o gasto ou o consumo em vez de incidir sobre a renda. Sobre essa declaração, que demonstra despreparo ou má-fé, guardou silêncio a imprensa. Na Europa, parte mais igualitária do Primeiro Mundo, a tributação do consumo, na forma do imposto sobre o valor agregado, já virou a fonte principal da receita pública. Não é imposto que permita cobrar mais de quem ganhe ou de quem gaste mais. Gera, porém, muito dinheiro com pouco desincentivo. A justiça social, sacrificada à eficiência econômica no desenho da arrecadação, volta redobrada na hora do gasto público. Importa arrecadar sem prejudicar o crescimento. E investir pesado no social o que se arrecadou.
No Brasil, temos de fazer o mesmo, simplificando o regime tributário, desonerando a produção e ampliando a base de contribuintes, graças à regularização da economia informal. O sacrifício, porém, só se justificará se ocorrer no bojo de projeto maior que democratizar o acesso ao emprego, ao crédito, à tecnologia e ao ensino. E se servir como ponto de partida para construir sistema tributário que não se contente em ser justo apenas nas aparências.
A tributação mais severa do consumo de luxo preparará imposto que individualize a tributação do consumo, combatendo a desigualdade radical no padrão de vida. E a tributação efetiva das heranças e das doações familiares ajudará a conter a desigualdade extrema de oportunidades.
O exemplo revela a dimensão do problema. Debate programático sério é debate complicado. Por isso mesmo, quem, com seriedade, propõe alternativa democratizante arrisca ter discurso que só seus adversários entendem. Uma proposta nacional se compõe de temas que, embora técnicos na aparência, são políticos e sociais no fundo. O conjunto dá sentido às partes. Seu cerne não está nas abstrações retóricas nem nos pormenores técnicos. Está na imaginação de uma trajetória composta por inovações sucessivas e combinadas e por alianças sociais e políticas que as sustentem. Trajetória traduzida em palavras simples, em medidas de impacto, em símbolos que ajudem a decifrar propostas e a revelar intenções.
O Brasil precisa do debate programático e não sabe como tê-lo. Qual a solução? A solução é persistir.


Roberto Mangabeira Unger escreve às terças-feiras nesta coluna.
www.idj.org.br




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