São Paulo, terça-feira, 30 de abril de 2002

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CARLOS HEITOR CONY

A viagem

RIO DE JANEIRO - Estou tomando café no bar do aeroporto e o homem de calça jeans, capanga fora de moda, mas cara honesta e risonha, vem falar comigo. Diz a obviedade que todos ouvimos, eu agradeço e pergunto de onde é e o que faz.
É padre, de uma ordem religiosa, tem 40 e poucos anos, foi roqueiro e fumou maconha, tinha uma noiva. Pela altura dos 23 anos teve uma visão e mudou de vida.
Evidente que sua história me interessou. Até certo ponto, minha trajetória foi na contramão da sua, embora não fume maconha nem aprecie em especial o rock.
A visão merece ser contada. Estava ele se preparando para ir a um show de Gilberto Gil, em meados dos anos 70. Com a ajuda de um amigo, fazia os baseados que fumariam mais tarde. O amigo abria a folhinha de papel e ele esfarelava a maconha na palma da mão e a derramava ao comprido, formando o cilindro irregular dos cigarros feitos manualmente.
Nisso, um corte brutal alterou aquela operação: ele viu sua mão transformar-se numa patena ritual, com alguns farelos de hóstia recém-consagrada que ele despejava num cálice com vinho também consagrado. É o momento da missa católica em que o celebrante limpa a patena dos vestígios da hóstia que consagrou e partiu, antes de comungar.
Ele nada disse ao companheiro. Não foi ao show do Gilberto Gil, mas à casa da noiva, onde rompeu o compromisso, dizendo que ia entrar para uma ordem religiosa.
Disse e fez. Teve as dificuldades de praxe, mas foi em frente. Nunca se preocupou em entender aquela visão que transformou a maconha em farelo de hóstia. Aceitou-a como um chamado, não como uma revelação.
Anunciaram meu vôo e eu me despedi. Ele teve tempo para criticar uma crônica minha, em que expressei meu pensamento sobre a liberação das drogas. Ele apenas me disse: "A droga não está do lado de fora. Ela está dentro da gente".


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